Ainda que se perceba a beleza e o charme à primeira vista, quem vê, em Mania de você, de João Emanuel Carneiro, o carrasco Yuri, vilão que causou horrores na vida dos mocinhos Rudá (Nicolas Prattes), Michele (Alanis Guillen) e Cristiano (Bruno Montaleone), nem imagina que a imagem cruel do bandido elegante que fala português com sotaque gringo e é tão frio quanto a Sibéria de onde saiu esconde uma personalidade carismática, divertida e apaixonante do ator Arthur Haroyan, um canceriano louco por novelas.
Estreante no gênero, o intérprete do personagem acompanha as produções da teledramaturgia brasileira desde a infância e, ainda menino, decidiu que estaria nelas. O fã da compatriota Aracy Balabanian (1940-2023), cujo trabalho conheceu na novela A próxima vítima, estudou artes cênicas, fez teatro, filmes e, só agora, após os 40 anos, teve a oportunidade de surgir em um folhetim da Globo.
Parece uma história ordinária, mas não é. Por um pequeno detalhe: o morador ilustre da Bela Vista, em São Paulo, nasceu e foi criado na Armênia — não na praça famosa que também dá nome à estação de metrô localizada na região de Bom Retiro na capital paulista, mas no país localizado entre a Europa e a Ásia.
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"Novela não é coisa de homem"
Nos anos 1980, quando Arthur nasceu, a nação armênia pertencia à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com cultura rígida, conservadora e machista que doutrinava os meninos a não gostarem de coisas como as novelas. "Na União Soviética, a gente só assistia o que produzia. Não exibiam nada que vinha do ocidente, nem filmes, nem músicas, nem novelas, e tudo que entrava era clandestino e contra o regime. Mas, bem no começo da ruptura da URSS, em 1991, as novelas brasileiras chegaram para desmoronar os planos que meus pais definiram para o meu futuro", relatou Haroyan em uma conversa com o Correio.
O imigrante armênio contou que a única diversão que havia na época da guerra dos anos 90 era assistir novelas na televisão antiga que a família tinha, um modelo preto e branco, com o seletor dos canais quebrado que só girava com alicate. "A Armênia, naquela época, estava em bloqueio e nem sempre a eletricidade batia com o horário da novela, mas meu tio tinha um jeito genial para agradar as mulheres do bairro: ele tirava a televisão de casa e colocava na frente da garagem, passava a energia da bateria do carro para a TV, sentava-se na sua frente, aumentava o volume para chamar a atenção das vizinhas, alisava o seu mustache staliniano com a própria saliva, acendia cachimbo e orgulhava-se da descoberta", narrou ele, com riqueza de detalhes.
Mas, assistir novelas não é coisa de homem, dizia o tio de Arthur, que fazia de tudo para ocupar o menino no horário das novelas. O esperto garoto, porém, que mais tarde encararia até uma guerra na vida real, sempre achava uma saída. "Através das novelas brasileiras, o público conheceu A escrava Isaura, que foi transmitida no horário nobre. Lucélia Santos passou a ser queridinha do povo. Em um determinado momento, ela ficou mais famosa do que o próprio Pelé. Todos diziam que, no Brasil, além de Pelé, tinha também a escrava Isaura, enquanto minha mãe ficou horrorizada com o enredo e me proibiu de amar o Brasil, achando que no Brasil ainda amarravam a gente nas árvores e chicoteavam. A novela foi um verdadeiro furor!", lembrou Haroyan.
Diáspora de um armênio
Em 2008, com 24 anos e uma mochila nas costas, o jovem sonhador e desbravador Arthur embarcou em uma diáspora solitária para o Brasil. "Tinha dinheiro contado no meu bolso, na verdade, na minha cueca, pois a minha avó obrigou a guardar lá para ninguém roubar. Eu obedeci. Era um trampo para ir ao banheiro e incomodava quando caminhava", contou.
Arthur falou para a família que estava vindo fazer um intercâmbio de três meses para aprender português. "Inventei para me deixarem vir; se eu tivesse falado que vinha para fazer novelas, seria internado em um hospício ou seria amarrado e trancado em casa, sob vigilância do meu tio", explicou o ator, que, antes de chegar a São Paulo, passou por Brasília até chegar em Rondônia, onde haviam pessoas indicadas por um amigo argentino para recebê-lo.
Na Paulicéia Desvairada, Arthur só sabia da existência de uma estação de metrô chamada Armênia, batizada assim por estar localizada em um bairro repleto de imigrantes do país. "Como eu conhecia a metade dos brasileiros através das novelas, achei que encontraria um deles nessa estação e tudo daria certo. Só que a realidade é bem diferente do sonho. Quando você é um turista, tudo parece bonito, porém, a partir do momento em que começa a cortar um dobrado para não morrer de fome, toda beleza automaticamente se transforma em um grande caos, mesmo quando se está no país dos sonhos", desabafou.
A instabilidade financeira tornou-se um desespero, uma aflição diária e constante. Arthur conta que simplesmente não tinha noção do dia seguinte. Não tinha coragem de rasgar a passagem de volta para Armênia, pois era a única alternativa para interromper sua jornada brasileira, caso tudo piorasse. Mas, apesar das dificuldades, o pior dia foi quando jantou uma sopa velha e já meio apodrecida, que ferveu com mais água e um sachê de Sazón.
Só depois de 10 anos, quando Haroyan voltou para a Armênia, a família soube toda verdade através de uma entrevista que ele concedeu ao Primeiro Canal Federal da Armênia, ao vivo. "Minha irmã mandou uma mensagem, dizendo que seria melhor passar a noite na casa de um amigo porque todos estavam furiosos", ele ainda se diverte.
Autobiografia e Jô Soares
Em sua terra natal, Arthur se formou em língua e literatura russa. No Brasil, Arthur trabalhou na Escola Armênia, deu aulas particulares de idiomas e atuou como intérprete. Ao longo de três anos, trabalhou na criação de um livro autobiográfico chamado O armênico, um conselho de amigos adiante de tantas narrativas hilárias que compõem a sua história de vida. "O choque cultural sempre é interessante de se ver e ler", comentou o autor da obra que teve três edições e, em pouco tempo, se tornou um bestseller no Brasil.
Hoje, a publicação está esgotada, mas está nos planos do também escritor fazer uma edição limitada. Lá, o armênio conta todas as aventuras, desde o nascimento até a chegada ao Brasil e aparecer no sofá lendário do gordo mais querido do Brasil, o Jô Soares.
Arthur Haroyan esteve no Programa do Jô, na Globo, em duas ocasiões: uma em 2013 e outra em 2015. "Foi durante o espetáculo 1915, do meu grupo, que contava sobre o Genocídio Armênio, que escrevi e também fazia parte do elenco. Fomos disparando press release e tive uma chamada inesperada da produção do Jô, dizendo que ele queria conhecer a história da minha vida", festejou.
"Foi uma honra, uma conquista e tanto estar naquele lugar e ser entrevistado por uma referência como Jô. A minha carreira foi subindo e mais gente conheceu que a Armênia não é apenas nome de uma estação de metrô", comemorou.
O fã de Aracy Balabanian
Após a entrevista a Jô Soares, a quem Arthur declarou, em rede nacional, sua paixão pela atriz Aracy Balabanian, que era filha de imigrantes armênios, a própria entrou em contato com ele querendo saber mais do jovem fã que chegou a enviar mensagem via Facebook para Miguel Falabella, amigo dela de longa data, dizendo ter vindo da Armênia para conhecê-la.
"Ele perguntou o porquê, e eu fui contando. Um dia, ele me mandou mensagem dizendo que alguém queria conversar comigo. Era a Aracy, é claro. Eles estavam jantando e Miguel decidiu fazer essa surpresa. Ligou para mim e passou o celular para ela. Eu fiquei tão feliz, mas tão feliz que quase cai 'na chon'..", contou, relembrando o bordão usado pela atriz quando interpretou a icônica Dona Armênia nas novelas Rainha da sucata (1990) e Deus nos acuda (1992).
"Provavelmente, a Aracy pensava: quem é aquele louco que atravessou oceano por minha causa?", observou Arthur que, em 11 de junho de 2013, recebeu o convite para assistir a gravação do humorístico Sai de Baixo, onde ela fazia a personagem Cassandra e que retornou ao teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, para gravar quatro episódios inéditos em comemoração aos três anos do Canal Viva. "Gritei de alegria quando recebi na portaria do meu prédio os convites para assistir as gravações. Como um garoto loucamente apaixonado, comprei o buquê de flores de campo mais lindo de São Paulo e corri para o teatro".
Haroyan conta que muita gente acompanhou seu encontro com Aracy Balabanian, inclusive a família dele na Armênia. Na hora do encontro, eles foram cercados pelas câmeras do canal Viva. "Captando aquele momento, eu diria, histórico", ele recorda, com emoção. "Eu a abracei e não era mais capaz de soltar. E ela disse: 'Você é um rapaz insistente, igual ao meu pai e o nosso povo. Isto é admirável!'. Essa foi a frase que definiu toda minha essência!"
Aprovado sem teste
Da mesma forma que veio o convite para a entrevista ao saudoso Jô Soares e o encontro com Aracy Balabanian, o chamado para interpretar Yuri em Mania de você foi por telefone. Eram 8h30 da manhã, ele estava no banheiro e não atendeu porque era um número desconhecido. Após alguns minutos, o mesmo número mandou uma mensagem.
"Estava nas alturas, ainda mais quando soube que já estava aprovado para fazer o papel e não precisaria fazer teste. Isso é o maior presente para um ator. Nem todas as ligações podem ser trotes, eu aconselho às vezes atenderem", recomenda o ator da novela das 21h, que chegou a morar na Sibéria nos anos 90, logo após a queda da União Soviética.
"Era uma época de muita bandidagem e anarquia. Meu personagem é um desses bandidos e eu tenho tudo isso na minha memória. Decidi que Yuri seria de áries, com ascendência canceriana, porque é um demônio e muito vingativo. E creio que o maior desafio não foi o do Yuri, foi meu, de ser dirigido pelo próprio Carlos Araújo (diretor artístico da novela)", concluiu Arthur, que já recebe nas ruas xingamentos por causa do personagem. "Isso significa que a conexão existe."