Pouco a pouco, na trama do longa Ainda estou aqui — filme de Walter Salles que novamente posiciona o Brasil na antessala do Oscar — partidas de gamão, uma corrente de descobertas de jovens e a representação da felicidade de uma família nos anos de 1970 sofre revés. O espectador é testemunha dos efeitos da ditadura que promove cerco e perseguições a civis, uso descabido de revólver e força, empurrões, telefones grampeados e escutas clandestinas. Inicialmente, o foco do longa é concentrado na figura do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), mas — com a imersão de seu corpo no aparato de desaparecimento da máquina ditatorial — não demora recair sobre Eunice (Fernanda Torres) e os cinco filhos do casal Paiva, entre os quais Marcelo Rubens Paiva (autor do livro biográfico que deu origem ao roteiro do longa).
Para além das perspectivas de emplacar múltiplas indicações ao Oscar 2025, entre as quais as aguardadas categorias de melhor atriz e de roteiro (assinado por Heitor Lorega e Murilo Hauser), o filme emplaca certo gosto apaziguador, ainda que amargo. Vale o reforço de que a dupla de roteiristas venceu o prêmio de roteiro no prestigioso Festival de Veneza. "A história é sobre quem fica", pontua o roteirista Heitor Lorega, em entrevista ao Correio.
Tornado símbolo da luta pela liberdade, junto com figuras, como o jornalista Vladimir Herzog e o estudante militante Stuart Angel, Rubens Paiva (assassinado em janeiro de 1971) puxa um enredo que conta, entre coadjuvantes com talentos brasilienses, como Maeve Jinkings e Camila Márdila, com cargas de aflição e desespero contrapostos a laivos de pequenas memórias e vitórias. Cabe à presença de Fernanda Montenegro concluir o calvário segurado, ao longo do filme, pela personagem da brilhante Fernanda Torres.
Entrevista / Heitor Lorega e Murilo Hauser, roteiristas
Há espaço possível para arte, quando há cenas de tortura?
Heitor Lorega — Durante o processo de feitura do filme, tivemos que revisitar muitas vezes vários dos relatos de torturas e violências cometidas pela ditadura, catalogadas em especial pela Comissão de Mortos de Desaparecidos e a Comissão Nacional da Verdade. Acredito que eventos como esses já estão de alguma maneira marcados no imaginário coletivo, pois foram recontados várias vezes, e se solidificaram a partir do cinema e da arte em suas muitas formas.
Como funciona o imaginário de roteiristas, quando impactados por imagens históricas de episódios reais?
Murilo Hauser — No caso de Ainda estou aqui fizemos uma enorme pesquisa histórica ao longo de muitos anos em jornais, revistas e outros acervos públicos e particulares. Esse material, selecionado junto ao Walter Salles, nos guiou durante a escrita do roteiro e a feitura do filme, em especial nas cenas que lidam com momentos históricos cobertos pela mídia da época — que, sabemos, era altamente controlada pelos militares.
Qual o acervo que mais exploraram?
Hauser — O acervo que mais nos influenciou foi, sem dúvida, o das fotos da família Paiva. Nele, coletamos imagens da época, assim como de Eunice e dos filhos desde antes o assassinato de Rubens até muitos anos mais tarde. Para se ter uma ideia, nossa sala de trabalho no Rio tinha todas as paredes cobertas com imagens das pessoas e personagens, em diferentes momentos e idades.
Quais os dados mais singulares da jornada da família Paiva levaram a cenas desafiadoras?
Lorega — Todos nós vimos inúmeras fotos, filmes, e histórias que se passaram por essas celas e corredores dos militares, onde ocorreram os horrores da ditadura e que não podem jamais serem esquecidos. Porém, acredito que as cenas mais desafiadoras de escrever foram as mais corriqueiras, que mostram a rotina e a intimidade dessa família. São elas que norteiam o espectador e que nos aproximam emocionalmente dessas personagens. A história, nesse caso, é sobre quem fica.
Algum caso em que as imagens caseiras direcionaram parte da história?
Hauser — Um exemplo prático disso está na fotografia que Babiu (uma das filhas do casal) já crescida vê no escritório de Eunice em São Paulo, da mãe ao lado de um monomotor. A imagem original (reconstruída pela equipe de arte, que refez a foto com Fernanda Torres) foi o disparador dessa cena, assim como de toda uma pesquisa sobre o atuação em campo de Eunice na luta pela garantia dos direitos indígenas (na Fundação Mata Virgem, na Fundação Pró Índio, no IAMÁ, e outras). A mesma pesquisa nos levou a importantes registros de Claudia Andujar, Nair Benedicto, Rubens Valente e muitos outros fotógrafos que também foram fundamentais na construção desse universo.
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