Lélia Gonzalez é uma dessas figuras que sempre esteve na proa, mas foi, durante muito tempo, ignorada pelos comandantes dos navios. Na última década, no entanto, ganhou protagonismo num cenário que costumava inviabilizá-la e passou a ser reconhecida como uma das pensadoras fundamentais do racismo estrutural no Brasil. Faz parte desse reconhecimento o Projeto Memória, que desembarca no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) com um seminário e uma exposição sobre a trajetória dessa ativista que levou para a academia as pesquisas sobre as lutas do movimento negro no Brasil e foi pioneira em fazer as universidades voltarem os olhos para o tema.
O seminário teve início ontem, com as participações de Macaé Evaristo, ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, e Melina de Lima, neta de Lélia e coordenadora de Articulação Interfederativa no Ministério da Igualdade Racial. Hoje é a vez da escritora Aline Carvalho, da pesquisadora Amanda Motta Castro e de Márcia Lima, da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação do Racismo do Ministério da Igualdade Racial, com mediação de Maíra de Deus Brito.
Autora de livros infantis com protagonistas negros, Aline Carvalho faz parte do BB Black, um grupo auto-organizado de servidores do Banco do Brasil, e vai falar sobre a importância de Lélia na educação. "Hoje, nas escolas, a gente não tem referências negras, só as brancas. Acho que esse é um ponto importante. E a Lélia é uma intelectual, a gente não tem muitas pessoas negras denominadas intelectuais, ela conseguiu romper essa barreira e trouxe coisas importantes principalmente na questão da linguagem", explica Aline, que também vai contar um pouco sobre a experiência do BB Black.
Organizadora, junto com Flávia Rios, do livro Por um feminismo afro-latino-americano, uma reunião de textos de Lélia Gonzalez lançada em 2020, Márcia Lima conta que se inspira diariamente na pensadora para o trabalho à frente da secretaria de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. "Ela nos faz pensar de maneira diferente a construção da identidade negra no Brasil e na Améfrica Latina, como ela diz, e inspira muitos dos trabalhos que a gente faz na secretaria", conta. "A gente tem o programa Caminhos Americanos, inspirado na Lélia, sobre a importância da decolonialidade da educação, que passa muito por desconstruir uma ideia de África e de uma visão ainda muito estereotipada sobre o continente africano."
Para Márcia, uma das coisas que mais chamam a atenção na biografia da pensadora é o fato de ser uma mulher negra, brasileira, que, no final dos anos 1980, conseguiu rodar o mundo e construir as próprias experiências com essa circulação. "Ela tinha uma coisa muito interessante também que era essa postura de vanguarda com as feministas e mulheres negras, com o feminismo negro brasileiro, que tem muito a mão da Lélia", explica. Lélia foi, ainda, responsável por trazer para a academia, como objeto de estudo, termos como Améfrica e pretuguês, sendo este último baseado numa pesquisa das identidades construídas a partir da fusão linguística do português com as línguas africanas.
Trajetória multidisciplinar
Em cartaz até dezembro, a exposição Caminhos e reflexões antirracistas e antissexistas, mesmo título do seminário, reúne 18 painéis que trazem estampada, com textos e fotografias, a trajetória de Lélia Gonzalez. "A exposição é uma fotobiografia da minha vó com vários trechos da vida dela. É uma exposição super legal", avisa Melina, neta da pensadora. Lélia se formou em história, geografia e filosofia para dominar os instrumentos que permitiram os primeiros estudos acadêmicos sobre o racismo estrutural no Brasil.
Foi professora da rede pública, fez mestrado em comunicação e doutorado em antropologia, foi docente de universidades como a PUC do Rio e ajudou a fundar o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPOCN-RJ), em 1975, e o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Gênero e etnia eram os alvos de suas pesquisas, que traziam uma perspectiva interseccional e visavam, principalmente, o impacto do sexismo e do racismo nas dinâmicas sociais. "A exposição fala muito sobre o tornar-se negra, um processo pelo qual a população negra passa para se reconhecer, sobre criar consciência e ter orgulho. Ela se especializou em várias áreas para apontar a estruturação do racismo. Estudou até linguística e psicanálise para apontar que o racismo é estrutural", explica Melina.
A expectativa é que a exposição seja vista por mais de 14 mil estudantes da rede pública, que devem participar também de atividades programadas até dezembro. Um filme de 30 minutos sobre a pensadora foi produzido especialmente para a mostra e também será exibido nas grades das televisões públicas. É uma maneira, ainda que tardia, de colocar o pensamento de Lélia Gonzalez em evidência. "O racismo fez com que esse reconhecimento demorasse a chegar", lamenta Melina. "Ela teve reconhecimento nos movimentos negros, mas a grande maioria, ela não tinha conseguido alcançar." Foi a ativista norte-americana Angela Davis que, durante uma visita ao Brasil em 2019, falou que os brasileiros precisavam ler mais Lélia Gonzalez. "Ela não entendia por que Lélia não era referência, mas isso para as feministas bancas, porque no movimento negro, sempre foi celebrada", avisa Melina. "A gente está num bom momento de luta, de reconhecimento do racismo e Lélia tem tudo teorizado."