Para que o rap se tornasse um dos gêneros mais ouvidos e apreciados dentro do contexto do que é popular no Brasil, alguns nomes tiveram que abrir a picada. Se o cenário era um matagal, foram os Racionais MC's que capinaram e construíram essa rodovia para que outros artistas pudessem trilhar os próprios caminhos. Edi Rock, um dos quatro Racionais, aproveitou o fato de que o rap está comemorando meio século desde a criação para voltar 40 anos no tempo e relembrar a gênese do próprio trabalho em Origens 3, o terceiro disco de uma trilogia de trabalhos ao vivo.
O projeto passeia por toda a caminhada de Edi, dos tempos de Zona Norte em São Paulo, passando por Racionais, até a carreira solo. Dos 54 anos de vida, 40 o músico dedicou ao rap. Então, nada mais justo do que uma retrospectiva para uma data tão marcante para o rapper que se tornou referência na cena musical brasileira. Nomes como Alexandre Carlo, Seu Jorge e Mano Brown fazem participação especial no álbum, que também ganhou um DVD.
Em entrevista ao Correio, Edi Rock destrincha o disco, fala sobre os 50 anos do rap, o aniversário de carreira e sobre como se vê após tantos anos nessa estrada que ajudou a construir e pavimentar.
Entrevista // Edi Rock
Para você fazer Origens 3, teve de voltar atrás e rever muita coisa que viveu, reencontrar-se consigo mesmo do passado. Como foi esse processo para chegar a esse ponto do DVD?
Emocionante! Em primeiro lugar, emocionante, porque você revisita 50 anos, essa é a minha idade, eu voltei lá atrás, onde eu nasci, onde eu cresci e onde fui direcionado para o mundo. Foi lá que eu conheci o KL Jay, por exemplo. Eu acho que não tinha momento melhor para falar sobre isso do que no fechamento de um projeto. Assim, eu estou muito realizado e feliz com a minha trajetória, uma história com que muitos se identificam. Porque, quantos não são da Zona Norte ou de outra região, mas tiveram uma história parecida? Então, eu quis trazer esse bônus para celebrar o trabalho mais recente. Mostrar a minha honra, meu orgulho, mostrar as minhas referências, minhas influências. Como funcionam e o quão são importantes até hoje na minha vida. Esse trabalho, em si, é isso. Ele é o resumo do Edi Rock, de como ele entrega, como ele pensa e como é a personalidade dele. Ali, mostra muito o meu tato com a vida, com a música, com as coisas, com a família, com as ideias e com a filosofia. Porque o rap é raiz. Politicamente falando, em São Paulo, o rap é raiz. Então, é o que nos direcionou. Que muitos dessa nova geração também ouviram e cresceram ouvindo Racionais, que se politizaram por meio do rap, dos Racionais e do movimento hip hop. Tem políticos, advogados, médicos, atores, atrizes, atletas, pessoas que a gente resgata, salva. Não gente como Racionais só, apenas o rap e o hip-hop.
Como você sente que a sua história e a do rap no Brasil e no mundo se misturam?
É uma honra fazer parte de algo tão importante assim e estar ativo ainda. É por isso que eu sou realizado. Eu não tenho mais como agradecer, a não ser devolver da melhor forma possível. No meu caso, por meio da música, mantendo essa relação de lealdade, de raiz, de identidade, de resgate, de ideia e de mensagem. Porque, foi isso que nos conduziu, foi isso que nos direcionou. Já dizia o poeta: 'Se somos o que somos. Então, o que nós somos?' Eu sou músico, sou um ativista por meio da música. Pois, eu levo a mensagem de resgate, de livramento, de salvação, de influência. A gente influencia muita gente, então eu acredito que fazer parte disso é um tesouro vivo para nós. Tem valor, mas não tem preço.
Como bate em você a percepção de que os Racionais chegaram e abriram o caminho para uma cena existir e agora toda essa cena venera o grupo?
A gente está num lugar bem honrado, um lugar feliz. Por isso que eu me sinto realizado, porque quando você, além de ser reconhecido, viu que aquilo deu certo, é tipo a felicidade dobrada. A gente fez parte de um movimento que veio se tornar um gênero, um fenômeno cultural que ninguém botava fé no começo. Era discriminado, foi até um tempo rejeitado, porque não entendiam. Assim como foi o samba e o funk. Mas, foi a oportunidade de o povo falar sobre a própria vida por meio desse novo gênero importado para nós. Ele não nasceu no Brasil, igual ao samba. Ele foi importado. Veio como black music, depois ramificou e foi embora. Nós começamos, mas já não nos pertence mais. A gente pertence ao movimento, o movimento não pertence mais a nós. Ele criou pernas e inteligência artificial até. O hip-hop tem sua própria identidade, sua própria inteligência. Para a gente que faz parte do começo é incrível ver como ele está maduro nos dias de hoje. E que ainda tem ambições. Isso é o mais importante de tudo, é você manter a diretriz e as ambições. Acho que é algo que não tem fim, é igual a natureza, ela tem um ciclo dela, se regenera e assim segue a humanidade. É assim que segue a nossa atividade, assim segue a nossa brasilidade, o rap é único. A gente vai além, porque a gente tem tantos gêneros e estilos dentro da música brasileira. O rap já não tem um formato original. A gente ainda é influenciado pelo estrangeiro, mas, hoje, a gente tem a nossa característica própria, nossa própria identidade.
O rap está fazendo 50 anos de idade, e você tem 40 anos de carreira. Como é saber que sua voz está chegando a gente que estava longe de nascer quando você começou?
Antes, não tinha nem celular, já começa por aí. A gente deixava recado ou ia até o local pra ver se se encontrava com a pessoa. Era assim para nós, os caras saiam de lá da Zona Sul, atravessavam a cidade para ensaiar lá na Zona Norte, gastavam metade do dia pra chegar lá e voltar. Hoje, a gente já tem uma estrutura. A finalidade é ter estrutura e, hoje, não só os Racionais têm essa estrutura, como o rap também tem. Porém, os caras, atualmente, fazem música em qualquer lugar, hoje tem vários produtores que fazem música no quarto, no apartamento. Você tem uma variedade, uma infinidade de ferramentas para fazer rap, você compra a batida na internet, compra o beat e escreve. No nosso tempo, a gente usava as batidas gringas, de disco importado, para cantar em cima. Depois que dava certo, precisava de uma gravadora para poder pagar o estúdio, para, só aí, poder fazer. Porque é e sempre foi muito caro. Hoje, se democratizou muito, então evoluiu. Quando saiu o rap, era muito caro para se fazer, e hoje se democratizou e popularizou, mas acho que essa é a meta: ter acesso. Quanto mais multiplicar, mais forte fica. O rap não é mais nosso. Não tem mais um pai. Ele é independente agora, já é crescido. Ele já anda com as próprias pernas.
Musicalmente, você sente que se adaptou? Chegando agora ao lançamento mais recente da sua carreira, você sente que você se adaptou às novas gerações?
A organização, a profissionalização, o business, entender os números, essa geração é isso. Então, é a evolução natural e necessária. Eu converso com a nova geração sobre isso. A gente tem que acompanhar. A gente não tem como lutar contra a evolução. É burrice. Tem que acompanhar a evolução porque você fez parte dela, fez parte da criação dela. Ela foi se adaptando e evoluindo. Então, a gente é como se fosse o ancestral desses que estão surgindo e ainda em vida. Para nós, é uma felicidade dobrada estar junto, dialogando e conversando com eles, porque eles cresceram ouvindo Racionais também. Então, a gente fala a mesma linguagem, a gente fala o mesmo dialeto.
As coisas que você fez há muito tempo ainda fazem muito sentido atualmente. Ao que você atribui essa atemporalidade do trabalho que possibilitou o lançamento de um disco com regravações de sons que ainda fazem sentido nos dias de hoje?
Eu costumo ver uma música legal de um artista e falar, c..., que sonzeira. Aí, vou no perfil do artista e estudo. Eu acho que esse trabalho também tem esse ponto das pessoas mais vão conhecer o meu trabalho. E essa é a meta, as pessoas me conhecerem, conhecerem o trabalho, conhecerem de onde eu vim e os Racionais mais a fundo. Depois de ouvirem, irem para os outros, pesquisarem Mano Brown e o trampo solo dele, por exemplo. A gente atravessa o tempo, como conseguimos fazer isso, eu não sei te explicar, em palavras. Contudo, o intuito e o código é a qualidade. Eu sempre penso na qualidade, sempre penso com a mente de DJ, com a mente musical, de pista. Eu gosto muito de lançar o que eu gostaria de ouvir. O Edi Rock, como DJ que ele foi, que ainda tem esse espírito dos toca-discos e de soltar a música, curte ouvir boa música e tem um espírito da pista, dos bailes. A música tem esse poder de agregar as pessoas, de juntar as tribos, de ir para vários lugares e de que o ouvinte conheça o mundo por meio dela. Eu acho que é uma mistura de tudo isso, essa é a minha receita. A minha vida é mandar energia boa por meio da música, uma voz boa, uma mensagem boa, de inspiração, uma mensagem para ir à luta, para ir para a guerra, para te fazer refletir de alguma forma ou simplesmente só música. É qualidade, essência, raiz e, principalmente, música negra. Qual a finalidade da música negra? O que eu entendi sobre isso, tento passar para frente como aprendi.
Você sente que venceu? Sente que sua luta continua enquanto você estiver de pé, rimando e fazendo sua música?
Eu sempre digo que eu sou um cara realizado. Venci? Venci. Eu tenho que trabalhar para poder me manter onde estou, onde eu cheguei. Mesmo que eu quisesse parar, eu não faria. Eu tenho que trabalhar. Porque eu tenho atividade, família e um monte de projetos em andamento. Todos esses pontos dependem de mim. Eu sou o pilar deles. Porém, eu sou realizado profissionalmente. Penso por onde a gente chegou, o que a gente alcançou, os níveis que a gente passou, que a gente sobreviveu para estar aí sendo referência para vários. Então, nós vencemos, chegamos ao pódio. Isso não se compra, não tem preço.
O que explica a longevidade de Os Racionais?
Qual banda do mundo está há 35 anos na pista e tem a formação original? Não sei. Nem o Rolling Stones tem, o Titãs não tem. Porque alguns morreram, outros saíram. Eles estão ativos, mas não com a formação original, isso que eu quero dizer. Estamos lá, os quatro, e vamos fazer 40 anos daqui a pouco. Se não acabou até agora, não acaba mais. Só acaba para descansar, tipo aposenta o nome e já era. Mas não por briga ou por discussão ou por desentendimento. Porque a gente já teve vários, e estamos juntos. Somos família, nós somos irmãos. Então, se for acabar, vai ser natural, caducando mesmo, feliz. Isso, para mim, é vencer, é uma realização. A gente ainda tomou com ambição, colocar mais um álbum na rua. Se isso não é vencer é o quê? Não sei o que que é. Continuar produzindo, com a mente boa, saúde mental boa, corpo bom, nós estamos todos bem, nossas famílias estão bem, nossos negócios estão bem. Somos abençoados, a gente tem que agradecer e continuar trabalhando porque a luta não para.
Você lançou esse DVD em que você olhou pra trás, viu tudo que tinha de bom e trouxe agora para o presente. Qual é o futuro que você acha que te aguarda em breve?
Eu só peço a Deus para envelhecer com saúde e continuar trabalhando com o que eu amo fazer, que é música, até quando a natureza, o universo e Deus permitirem. Porque é minha profissão, não sei fazer outra coisa também. Então eu vou fazer, tenho muita ambição ainda e muitos projetos para pôr na rua e para fazer parte. Então é isso, é trabalhar. Meu sobrenome é trabalho.
Qual a sua relação com Brasília?
Brasília, pô, é um lugar especial para nós e para o rap desde sempre. A rapaziada toda é muito especial, me lembro do falecido Jamaica, parceiro, do Gog e do Japão. Nossa, vários! Toda essa rapaziada aí de mil anos aí. Brasília sempre esteve no mapa do rap, respeito para sempre. É a família, faz parte da família, da corrente do rap, da raiz que não deixa morrer. Os caras ou estão cantando ou estão envolvidos na política, na cena, estão sempre em movimento, isso é muito importante. E a nova geração também com nomes como Tribo da Periferia e Hungria. Um movimento muito legal.