Cinema

O adeus ao cineasta Vladimir Carvalho, o bravo humanista

Morreu, ontem, aos 89 anos, o cineasta Vladimir Carvalho, um dos mais importantes documentaristas brasileiros e uma referência para o cinema brasiliense e brasileiro

Dizem os amigos, que Vladimir Carvalho morreu de felicidade. Ele estava muito contente por ver andar o projeto de transformar a Fundação Cine Memória em um museu do cinema. Mas o coração não aguentou. Aos 89 anos, o cineasta morreu ontem, devido a complicações após um infarto sofrido em 5 de outubro, na mesma semana em que recebeu do Iphan a notícia de que possíveis soluções para abrigar o acervo da fundação estavam a caminho. Após um entrevista para Márcia Zarur, Vladimir se sentiu mal, foi internado e  entubado na UTI do Hospital Santa Helena. Chegou a ser extubado, mas precisou de diálise e o rim não deu conta. O cineasta será velado hoje, das 9h30 às 13h30, no Cine Brasília, templo que tantas vezes recebeu sua obra. Ele será enterrado, às 14h30, na ala dos pioneiros do Cemitério Campo da Esperança. O governador do DF Ibaneis Rocha decretou luto oficial de três dias em homenagem a Vladimir.

Verdadeiro pilar do cinema que reverberava a criação artística e o teor político da capital país afora, Vladimir Carvalho sacramentou o nome entre os gigantes. "Foi um dos maiores documentaristas do país, um professor generoso, um defensor apaixonado do cinema brasileiro e um dos fundadores e pioneiros do cinema brasiliense — a história do cinema brasileiro, a de Brasília se mesclam na dele. Nas suas memórias. É uma vida imensa muito difícil caber em poucas palavras. Um legado que há de reverberar por gerações", observa o diretor brasiliense José Eduardo Belmonte, aluno do cineasta paraibano.

"É muito difícil falar. Fiquei órfão: Vladimir era meu irmão mais velho e me aplicou a dependência desta substância chamada cinema, e com a qual sigo exercitando. Ainda garoto, nos anos de 1960, ele me mostrou o curta-metragem O balão vermelho (de Albert Lamorisse). Como irmão, veio minha dependência dele para ser meu consultor para tudo o que eu não vi, num aprendizado", avalia o diretor de fotografia Walter Carvalho, autor das imagens de Central do Brasil, Madame Satã e Carandiru.

Embaixador de Brasília

Walter conta que a chave para o cinema de Vladimir era a ótica única dele. "Era um lutador que refletia em seus filmes o humanismo. A interferência dele se dava, por mais que quisesse chegar perto da realidade com seus documentários, na instância da preocupação como o outro, com os amigos e com o Brasil. Ele dizia que não tinha filhos, tinha filmes. Naturalmente, uma semente brotou na nossa família pelo nascimento do Vladimir. Estamos imbuídos da tarefa da continuidade, desde mim, passando pelos meus filhos Lucas (diretor de televisão) e Lula (diretor de fotografia)", observa, emocionado, o também diretor de Raul — O início, o fim e o meio.

Da filmografia, Vladimir via o premiado Conterrâneos velhos de guerra (1990) como o mais representativo. Nele, traz à tona o empenho de operários na construção da capital, sem abraçar versão oficial, e, em tom de denúncia, recoloca em cena a chacina de trabalhadores pela Guarda Especial de Brasília. "Meu filme O país de São Saruê mostra a luta do povo nordestino no sertão, enquanto o Conterrâneos... se detém na luta de muitos deles que vieram para a construção de Brasília, como se aqui fosse o Eldorado", resumiu ao Correio, há quase duas décadas. Embaixador informal de Brasília, Vladimir — como bom repórter formado Correio da Manhã — ia a campo, e sempre a pé, na cidade de veículos onipresentes. "Dizem que sou o último dos cavaleiros andantes", brincava ele, que sentenciou ser um "nordestino transplantado para o Planalto Central".

Para além do encanto com a popularidade da cultura, presente em filmes como Cícero Dias e Romeiros da guia, o cineasta cultivava memória prodigiosa alimentada pela constante leitura. "Sou um dinossauro, ainda leio", certa vez, me confessou, com o sorriso quase infantil da surpresa com a espontânea sagacidade.

Há muito de contemporâneo em suas obras, como Quilombo (1976), no qual mostra a precariedade em comunidade negra. Aspectos de seleção (nada natural) povoam Vestibular 70, o primeiro filme dele em Brasília e ainda a exclusão — dado presente em A bolandeira (1967), com o qual apresenta a limitação da tração animal em engenhos. A extração de minério é tematizada em A pedra da riqueza, enquanto, no diferenciado Paisagem natural, deu espaço para a abundância (à época) de rios, cachoeiras, e da rica fauna e flora nas redondezas do DF.

Cineasta e historiador, além de antigo secretário de Cultura do DF, Silvio Tendler — autor de clássicos como Os anos JK — Uma trajetória política (1981) — reverencia Vladimir como seu grande mestre de cinema."O conheci na época em que o filme O sertão do Rio do Peixe, que viria a resultar em O país de São Saruê, estava em produção. Foi em 1968 na Cinemateca do Museu de Arte Moderna que nos conhecemos e não nos desgrudamos mais. Sempre digo que Vladimir foi o grande documentarista brasileiro. Junto com cubano Santiago Álvarez e o holandês Jores Ivens, forma o trio dos maiores. Ele era o João Cabral de Mello Neto do cinema brasileiro: seco, ferino e que pontuou a tela com algo que nunca ninguém fez nada igual", resume o cineasta de Glauber o filme, labirinto do Brasil.

Desbravador da cidade

"Como tudo em Brasília, o cinema da cidade começou do nada graças a desbravadores como Vladimir. Por muitos anos, ele foi o nosso norte. O legado dele é múltiplo, está tanto na busca pelas condições de erguer o cinema brasiliense quanto na sua arte, nas grandes obras que deixou, algumas eternas e decisivas para a consolidação de uma estética local", completa o crítico, cineasta e jornalista Gustavo Galvão, numa referência ao diretor que se fez presente em momentos vitais para a cultura da cidade, como a formação do Polo de Cinema.

Quem o conheceu a fundo foi o jornalista, escritor e crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, autor de um livro para a Coleção Aplauso: Vladimir Carvalho — Pedras da lua e pelejas no Planalto, em torno da obra do cineasta. "Ele era um homem de imenso carisma pessoal e grande dignidade profissional. Desde os anos 1960, nas origens do documentário brasileiro moderno, inspirou o melhor do cinema com suas invenções formais e seu compromisso com a imagem do homem comum, do trabalhador e do camponês. Entre o sertão nordestino e o Cerrado do Brasil Central, sua obra é um retrato inestimável do país, de sua gente e de suas desigualdades. O Brasil fica muito mais pobre sem o seu olhar", avalia crítico ao Correio.

"Se o documentário brasileiro é hoje uma das forças de nosso cinema, devemos muito a esse grande cineasta. Ele deu novo rumo ao cinema documental desde sua importante participação no clássico Aruanda, realizado com Linduarte Noronha em 1959. Estava ali demarcada a mudança, direcionando as câmeras para os reais problemas desse nosso triste país. As questões sociais passavam a ser o foco principal de nossas câmeras", avalia o cineasta e amigo João Batista de Andrade. Ele conta que o colega nunca se esquivou do desafio dos dados sociais, filme a filme. "Nisso, tornou-se um dos mais importantes cineastas do nascente Cinema Novo. É preciso saudar este documentarista essencial, que nos ajudou a ver o Brasil real, um país assentado na miséria de nosso povo", completa João Batista.

Ativa pesquisadora de cinema brasileiro, Maria do Rosário Caetano foi aluna do quase nonagenário professor da UnB, e se viu "em estado de choque com a perda". "Ele parecia ter uma saúde de ferro — brincávamos que era uma mistura de indígena com todas as forças da terra nordestina", comentou. O Festival Aruanda já se preparava para comemorar os 90 anos dele e do Geraldo Vandré, ambos paraibanos. Há histórias maravilhosas sobre a experiência em cinema de Coutinho e Vladimir", diz a combativa jornalista.

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