“Antes de a minha esposa se tornar vegetariana, eu sempre pensei nela como uma pessoa completamente irrelevante em todos os sentidos.” Assim começa o romance A vegetariana (2007), de Han Kang, escritora sul-coreana ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2024.
A primeira parte da obra, dividida em três, leva o mesmo título do livro e é narrada pelo marido da personagem principal, Sr. Cheong. Uma breve introdução de como as coisas eram para o casal antes de a mulher, Yeong-hye, se tornar vegetariana — o grande mote da história — é narrada do ponto de vista do homem, antes de as ações atuais começarem a ser, de fato, contadas por ele.
Yeong-hye é descrita pelo próprio marido, desde o início, de maneira pejorativa, como uma pessoa “pálida”, “de aparência doentia” e “não atraente”. Essas características, de imediato, são importantes de se observar, principalmente quando se leva em conta o contexto dos padrões de beleza predatórios na Coreia do Sul, onde se passa o romance.
Quando a personagem deixa de comer carne por causa de um sonho, o que a leva a outros comportamentos considerados incomuns, os adjetivos do marido passam de características relacionadas à beleza a aspectos comportamentais e mentais, uma vez que ela passa a ser descrita como “louca” e “irreconhecível”.
Os pensamentos de Yeong-hye são intercalados, como em fluxo de consciência, com a narrativa nada imparcial do Sr. Cheong. Esse artifício utilizado pela autora deixa ainda mais claro o quanto o marido não entende, nem faz questão de entender, todos os problemas pelos quais a personagem principal passa e todas as coisas que circundam a mente dela.
Dessa forma, somente pela maneira com que é narrada a primeira parte, é possível compreender aspectos fundamentais para o restante da obra. O egocentrismo do marido, somado aos pensamentos confusos e negligenciados de Yeong-hye, são peças-chaves para a trama.
A segunda parte do livro mostra os pensamentos perturbados de outro personagem. O cunhado de Yeong-hye, um artista cujo nome não é mencionado ao longo da obra, se vê em uma contradição entre ideias e ações, trabalho e família, e o que é moralmente certo e errado.
Apesar de em terceira pessoa, os pensamentos do cunhado são explicitados por um narrador onisciente: “Ele estava se tornando dividido contra si mesmo. Era um ser humano normal? Mais do que isso, um ser humano moral? Um ser humano forte, capaz de controlar os próprios impulsos? No fim, se viu incapaz de afirmar com certeza que sabia as respostas para essas perguntas, embora estivesse tão certo antes”.
Assim como Yeong-hye, ele sente algo no caminho da garganta, que o impede de respirar normalmente e de viver de forma normal ao conviver com os próprios pensamentos. Sobretudo, ele parece ser o único personagem ao redor dela que é capaz de entendê-la um pouco, já que ele próprio também não estava no molde esperado pela sociedade — um contraponto, por exemplo, a Sr. Cheong, que é empresário bem-sucedido e pautado por “bons costumes”, mas não consegue compreender a mulher.
O cunhado conseguia entender, por exemplo, que “talvez simplesmente houvesse coisas acontecendo dentro dela [Yeong-hye], coisas terríveis, que ninguém mais poderia adivinhar, e, portanto, talvez fosse impossível para ela lidar com elas e com o dia a dia ao mesmo tempo”.
A perspectiva da irmã de Yeong-hye, esposa do artista sem nome, explicitada na terceira parte do romance, revela que “em certos aspectos, ambos [o marido e Yeong-hye] eram desconcertantes para ela [irmã] exatamente da mesma maneira”.
Mesmo entendendo a personagem principal e vivendo dilemas semelhantes aos dela, porém, o cunhado escolhe não ajudá-la, mas usufruir do poder que tem, como homem que tem acesso à fraqueza de uma mulher, para usá-la em benefício próprio.
No fim, a solução para os homens parece ser exatamente esta: deixar esposa e família para trás, como os dois maridos presentes no romance fizeram, pensando apenas em si mesmos. As mulheres, ao contrário, tanto Yeong-hye quanto a irmã, carregam o fardo de conviver com algum tipo de luta, seja essa luta contra si mesmas na própria mente ou ao tentar dar o melhor de si; no fim, sempre sozinhas.
Afinal, apesar de ter como mote o vegetarianismo, o fato de não comer carne é apenas metáfora para o fato de uma mulher ter sido levada a se sentir doente dentro da própria cabeça pelas pessoas que a cercavam, desde criança até a maneira como ainda é tratada pela família no presente.
Assim, é sensível o fato de essa metáfora ser narrada primeiro por um homem sem nenhum senso de empatia, que afirma não conhecer a mulher com quem está casado há cinco anos quando ela está no seu pior estado; depois por um narrador que mostra a perspectiva de outro homem, que, mesmo entendendo um pouco do que protagonista poderia sentir, não tem nenhum respeito por ela.
Quando a história passa para a mente da irmã, In-hye, na terceira parte da obra, essa crítica se acentua. É possível perceber, claramente, a forma como mulheres nunca parecem ser suficientes em uma sociedade machista, mesmo quando estão perfeitamente encaixadas em papéis patriarcais.
A irmã de Yeong-hye é uma mulher submissa e subserviente, que não tem coragem de expressar sentimentos e desconfortos, mesmo sendo ela quem sustenta a família e alimenta marido e filho.
Enquanto o marido de Yeong-hye, Sr. Cheong, anseia pela irmã In-hye e inveja o marido dela, o marido de In-hye anseia por Yeong-hye e encontra em In-hye, o modelo que age exatamente como espera a sociedade, “o tipo de mulher cuja bondade é opressiva”.
Desde que In-hye era jovem, ela teve de cuidar da irmã, como se fosse uma mãe, e, daí em diante, não teve tempo para si mesma, somente para os outros, sejam eles irmã, pais, marido ou filho. Mesmo ao final, porém, quando Yeong-hye está sendo cuidada por outros e o marido deixou In-hye, quando ela poderia finalmente ter cuidado de si mesma, ela não foi conseguiu ter paz, cheia de culpa por não ter sido capaz de cuidar daqueles que supostamente deveria.
Ela continua se machucando com o pensamento de que poderia ter feito algo — até mesmo ter “adivinhado” as coisas que aconteceriam — para evitar que a vida das pessoas ao redor desmoronasse.
In-hye nunca viveu e, quando a perspectiva dela finalmente é mostrada pela escrita sensível da terceira parte da novela, o arrependimento fica claro por meio de pensamentos que o narrador consegue colocar em palavras. Ela sofre e, ao contrário da irmã ou do marido, não há ninguém para cuidar dela, pois foi ela quem cuidou de todos.
O livro termina com In-hye sem resposta para a pergunta que ela mesma fez à irmã: “Eu também tenho sonhos, você sabe. Sonhos... e eu poderia me deixar dissolver neles, deixá-los me dominar... Mas certamente sonhos não são tudo o que existe, certo? Temos que acordar em algum momento, não é? Porque... porque então...” Ela não tem uma resposta.
Valeu a pena tentar suprimir os pensamentos que mantêm todos longe da realidade, como In-hye vinha fazendo a vida toda? Valeu a pena não viver para os próprios sonhos para que ela pudesse ajudar a todos ao redor em seus pesadelos? “In-hye olha ferozmente para as árvores. Como se esperasse por uma resposta. Como se protestasse contra alguma coisa.” Ela não sabe.
*Os trechos do livro foram traduzidos de forma livre ao português, a partir da tradução do inglês de Deborah Smith, de 2016.