Cinema

Mostra no DF revive a obra do escritor Fernando Sabino

Nascido há mais de 100 anos, o escritor Fernando Sabino tem a obra revivida por mostra no DF, que ainda revela faceta do autor-cineasta

Autor celebrado pelo impacto de quase 50 livros, entre os quais O encontro marcado (1956) e a coletânea de crônicas A falta que ela me faz (1980), Fernando Sabino, no Ano Nacional que leva o nome dele, em reconhecimento ao centenário de nascimento (2023), chega ao público de forma diferenciada integrada por mostra de cinema, até 16 de outubro, com sessões no Cine Brasília (EQS 106/107) e nas sedes do Sesc de Taguatinga Norte e Ceilândia. "Sabino, por exemplo, dirigiu 10 minidocs em parceria com o cineasta David Neves. Esses filmes destacam a vida e obra de escritores brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade e Érico Verissimo. O toque de Sabino está claro na visão do lado mais íntimo e pessoal dos autores, assim como na forma como ele humaniza os escritores, mostrando não apenas suas obras, mas também suas personalidades e peculiaridades", explica Cláudia Queiroz, idealizadora e curadora da mostra.

Vencedor, em 1999, do prêmio Machado de Assis (pelo conjunto da obra) concedido pela Academia Brasileira de Letras, Sabino chamou a atenção de diretores, como Jorge Monclar, que adaptou e  dirigiu mais de 15 curtas baseados no autor. "São adaptações notáveis, tanto pela quantidade quanto pela qualidade, refletindo a profundidade e a versatilidade da escrita de Sabino. Monclar contribui para que filmes sejam um testemunho do impacto duradouro da obra de Sabino, pela capacidade de ele adequar ao cinema, de modo fiel e envolvente, preservando riquezas e renovando a apreciação de novas gerações", comenta a curadora. Além dela, personalidades de Brasília tomarão parte da comemoração: Adriana Andrade, Gog, Cibele Amaral, Vladimir Carvalho e Dinorá Couto Cançado são algumas.

Com direito à criação de obra autobiográfica, em 1988 (Tabuleiro de damas), Sabino viveu até 2004, quando um câncer o impediu de completar os 81 anos. Interessante na telona, ainda é a adaptação de O menino no espelho, no qual um jovem roga por um sósia, a fim de apreender vivências em tempo paralelo. O talento do escritor transposto para a tela reuniu nomes de peso como Paulo José e Leila Diniz (O homem nu) e, em Crônica da cidade amada, com participações de Carlos Hugo Christensen e Paulo Autran. "Aspectos de sua escrita e alguns temas recorrentes em suas histórias foram captados pelo cinema. Por exemplo, no filme O grande mentecapto, o cineasta Oswaldo Caldeira mantém o tom pitoresco e a crítica social presentes no livro, destacando uma comédia de absurdos. Já em O homem nu, a versão do diretor Hugo Carvana (1997) faz uma comédia de costumes que explora situações cotidianas com humor e ironia, características vistas em Sabino. Roberto Santos, noutra versão, traz menos comicidade", avalia Cláudia Queiroz.

Vinicius de Moraes, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto foram alguns dos ilustres cinebiografados pelo olhar de Fernando Sabino, anos depois de ele estabelecer a Editora do Autor, fundada em parceria com Rubem Braga e Walter Acosta. "Segundo o próprio escritor relata no livro Zélia, uma paixão, ele descreve essa experiência (de cinema) como muito enriquecedora, além de desafiadora. Descreveu que dirigir exigia uma dedicação e um tipo de criatividade diferentes da demanda como escritor, mas que a experiência ampliou sua visão sobre narrativas e a arte de contar histórias", conta a curadora da mostra.

Situações inusitadas habitam filmes como Um contador de histórias, em torno de Érico Veríssimo. "Lá, ele mostra o amigo fazendo mágicas e imitando um samurai para os netos. Já em O fazendeiro do ar (1974), sobre Carlos Drummond de Andrade, Sabino captura momentos de irreverência e simplicidade do poeta ao mostrá-lo brincando de esconde-esconde. No todo, Sabino consegue mudar a visão de monstros sagrados que nós temos de nossos grandes escritores, demonstrando, com muito carinho, o lado lúdico e humano de seus colegas, criando uma ligação emocional do público com eles", conclui.

Bernardo Sabino // filho do autor, e presidente do Instituto Fernando Sabino

Há traços de lirismo infantil, além de singeleza, por momentos, na obra do teu pai. De que maneira isso se afirmava?

Meu pai dizia que, quando ele crescesse, queria voltar a ser criança. Ele tinha isso na alma, não fazia nada por esforço. Era espontâneo este traço infantil na vida dele. Isso está na obra. Ele escreve com uma facilidade muito grande para as crianças. Há várias histórias infantis dentro da obra dele, e a facilidade de comunicar com as crianças na sua escrita. Tenho um projeto de cunho educativo nas escolas públicas. Na metodologia de leitura, eles se encantam e interagem com muita facilidade com a obra dele, mesmo com algumas destinadas a público mais velho (a citar O homem nu), as crianças pequenas adoram, e se encantam. Fernando era uma verdadeira criança. "Quando eu era pequeno, os mais velhos perguntavam: 'O que você quer ser, quando crescer?' Hoje não me perguntam mais, mas, se perguntassem, responderia: 'Quero ser menino'", cito. E ele pediu pra botarem na lápide dele: "Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino". Ele falava que as crianças ensinaram para ele uma das coisas mais importantes que era ver tudo com os olhos lavados de pureza, como se fosse a primeira vez.

O que sabe do trânsito dele com outros autores de expressão?

Meu pai era amigo de todos os escritores. Por ele ter criado uma editora e ter crescido, no Rio, no meio de escritores, ao ter se mudado aos 18 anos. Ele tinha uma relação muito íntima, tanto que, nos filmes que ele fez com os outros escritores, você o vê tirando coisas que nenhum jornalista normal tiraria. Isso é bem acentuado. Na obra cinematográfica, você percebe a intimidade que ele tem com o escritor focalizado.

Como crê que a corrente de leitores jovens dele se renove?

Há uma corrente jovem de leitores hoje, e é muito difícil se formar leitores. A gente tem um trabalho de estímulo à leitura através de incentivo de tornar a leitura uma diversão: o aluno lê para fazer grafite, rap, funk e outras formas de arte, unindo dança, teatro e artes plásticas. Já alcançamos um milhão de alunos em sala de aula. O jovem passa a gostar de ler. Para além da atividades, levamos uma mostra cinema junto e se passa a suscitar no jovem a vontade de ler. Isso é importante: criar mecanismos novos e metodologias que estimulem a leitura. A obra do meu pai ajuda, no sentido de que, os textos dele têm muito a ver com a realidade do jovem. São textos pelos quais passam a gostar, textos engraçados e que têm muito a ver com a realidade deles. Acho que, por aí, você cria mecanismos e mostra a importância da leitura, junto a outras formas de arte.

Qual era o grau de apego dele com o cinema?

Ele sempre conversou muito comigo a respeito de cinema. Tinha vontade de fazer cinema. Meu pai andou comigo na Lapa, mostrando os locais em que iam acontecer cenas de Um corpo de mulher. Ele estava hospedado lá, e caiu o corpo de uma mulher. Nisso, escreveu uma história maravilhosa e queria fazer filme dessa novela — já fiz até um roteiro. Estava sempre encantado com essa coisa do cinema. E a escrita dele poupa muitas vezes o diretor de arte e poupa o roteirista: está tudo ali, pronto. No Galinha ao molho pardo, literalmente, o texto dele está no pensamento do menino (personagem)! É muito bacana esse envolvimento de transpôr a literatura para outras formas de arte, num encantamento que ele tinha. Tanto é que ele resolveu fazer cinema.

Qual a tonalidade do autor nos filmes em que se envolveu na produção, ao retratar outros colegas de ofício?

Ele foi roteirista de vários filmes dele. Nos roteiros dos filmes, criou uma linguagem e quis mostrar que aquele texto era feito por uma pessoa que sabia escrever; no caso, era ele. Você nota ele querer falar com uma qualidade de texto sobre outros escritores. É estudado, ele não pegou e fez um roteiro por fazer. Até porque os escritores iriam assistir e ele não queria fazer de qualquer jeito. São sensacionais — filmes que mereciam ganhar prêmios.

Palavra de especialista

Eu mexi pouquíssimo no roteiro do Leopoldo Serran, para o filme Faca de dois gumes, baseado no Sabino. Ele entendeu, e foi incrível. Mexi, para dar tratos às minhas maluquices temáticas que se repetem com sequestros, com Brasil que é o tema, assim como a corrupção. Foi feito com muita paixão. É um dos bons, e raros, thrillers brasileiros. E falamos do incrível o Fernando Sabino. Me dá tristeza, quando vemos que o Brasil acabou! Não se faz mais gente como Antonio Candido (de documentário que acabei de assistir) e o Sabino. Fernando era um gentleman, culto, simpático, generoso. Tive uns seis encontros com ele, que escutava muito. Foi um encantamento. O Fernando com a geração que veio com ele de Minas Gerais (Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino) — que Brasil. Que gente! O Brasil já foi feito por homens que tinham uma transcendência, uma cultura — eles tinham nobreza e grandiosidade. Tive, nisso, a grande chance de conviver com o Fernando, numa oportunidade de vida. O Faca de dois gumes foi muito incrível: o Paulo José (protagonista) foi um presente. O Fernando gostou muito do filme apesar de eu ter mexido bastante. Encontrava com a última esposa dele, Lygia, com ela matava a saudade de Fernando de quem gostaria de ter sido mais amigo. Para o filme, fizeram, na Globo, uma matéria de nove minutos, e, no outro fim de semana, já tínhamos 750 mil espectadores — o que era absolutamente inacreditável. Tenho orgulho danado desse filme. Veio junto com o Brasil que ia ser possível, que estava sendo possível: o modernismo, a arquitetura, Brasília — essa cidade louca e maravilhosa, e Fernando Sabino! E o Brasil vai sendo formatando, a partir de agora: surge o Brasil quando negro e os outsiders tiverem realmente voz.

Murilo Salles, diretor de Faca de dois gumes

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