O cineasta Vladimir Carvalho e o crítico de cinema Amir Labaki se conheceram nos anos 1990 e logo ficaram amigos. Esse laço de amizade foi fundamental para a criação do festival internacional Tudo é Verdade, realizado em São Paulo, o mais importante evento de documentário do país. Amir esteve em Brasília especialmente para acompanhar o velório e o enterro do amigo. Amir afirma que Vladimir é a cara e o sorriso do cinema brasileiro. No calor da hora, Amir falou sobre o laço de amizade com Vladimir, a relevância do cineasta paraibano-candango para o cinema brasileiro e a importância de preservar o acervo do Cinememória.
Entrevista // Amir Labaki, curador e crítico de cinema
Em que circunstâncias conheceu Vladimir e estabeleceu laços de amizade com ele? E qual a importância dessa amizade?
Eu conheci o Vladimir no começo dos anos 1990, faz três décadas. Ele era um homem maduro, e eu era um jovem crítico de cinema, naquela época. Depois, virei diretor de museu e de festivais: ele me adotou. Ficamos amigos, como é possível ter amigos de uma geração, duas gerações acima; ele foi fundamental para tudo eu fiz como fundar o festival de documentário É Tudo Verdade. Deu o privilégio de conversar muito sobre o desenvolvimento do cinema dele, sobre a preocupação que ele tinha com a cultura brasileira. Nos falávamos, eu, em São Paulo, ele, em Brasília, regularmente por longos telefonemas, graças a Deus, de mais de uma hora de duração, pois a saudade era muito grande.
Como se deu a participação de Vladimir no festival É Tudo Verdade?
Para o É Tudo Verdade tivemos o privilégio de tê-lo como júri na primeira edição, lançamos quatro, cinco filmes dele dentro e fora de competição ele participou de várias conferências internacionais de documentário, e fizemos retrospectivas com a presença e os filmes dele. Sempre que ele aparecia, com a sua energia positiva e o seu carisma a equipe do É Tudo Verdade ficava muito mais feliz.
Qual é o lugar de Vladimir Carvalho dentro do cinema brasileiro?
Ele é o maior cineasta brasileiro dedicado exclusivamente ao documentário. E a história do documentário brasileiro é mais do que a metade da história do cinema brasileiro. Ele foi fundamental para estabelecer o documentário brasileiro sólido, como ele é hoje, como para retratar, sobretudo, o Nordeste. Ele que se autodenominava filho da civilização do couro, e Brasília aonde ele se refugiou a partir dos anos 1970.
O que distingue Vladimir Carvalho?
A primeira coisa que distingue o Vladimir é o fato de ser um documentarista puro-sangue. Você não tem muitos documentaristas cineastas dedicados apenas ao documentário com uma obra de maior relevância que tenham ficado em atividade e por tanto tempo, fazendo só documentários. Para mim, isso é muito claro.
Qual a contribuição desse apreço ao real para o cinema brasileiro e para a compreensão da realidade brasileira?
Eu acho que o Vladimir, com esse monopólio do real no cinema dele, ajudou a expandir o cinema brasileiro. Ele ajudou a mostrar que o documentário podia ser tão variado quanto a ficção. Porque os temas que o Vladimir tratava iam sempre desafiando ele mesmo a inventar um novo jeito de apresentar aquela história. Quando eu penso que ele fez O país de São Saruê, que é muito diferente do Conterrâneos velhos de guerra, formalmente, como é diferente de O evangelho segundo Teotônio, que é diferente da Pedra da riqueza, que é muito diferente de Rock Brasília: era de ouro. É muito impressionante quando a gente para para pensar nisso. Quando ele começou a fazer documentário, no Brasil, a gente não tinha essa noção de que o documentário era tão rico e podia ser tão variado. Ele foi fundamental para nos ensinar que o documentário é tão nobre, tão importante, e mais surpreendente do que a ficção. Eu não canso de me surpreender — e falo no meu presente, porque Vladimir está muito presente, com cada novo filme dele, porque eles eram sempre diferentes. Quando a gente para para pensar a obra de grandes cineastas brasileiros, de ficção e de documentário, é tudo cinema. Falo dele como documentarista por ser o que o distingue. Ele não tinha este estigma (ao contrário): ele adorava ficção, adorava ficção e os colegas que faziam ficção. Mas mesmo grandes obras de cineastas brasileiros que ficaram restritos a só fazer ficção não são tão complexas, não são tão variadas e não mostram personagens e lugares tão ricos e diversificados como a obra do Vladimir mostra.
Como foi a última vez que você falou com Vladimir?
A última vez que falei com ele, por telefone, estava aliviado porque via uma luz no fim do túnel do que estava sendo feito pelo Ministério da Cultura, pelo Iphan, pela secretaria do Audiovisual, pelo CCBB e pela Cinemateca Brasileira. Ele passou a última década, sem exagero, mais preocupado com o destino do acervo dele, no Cinememória, do que em fazer novos filmes, e felizmente, ele continuou os fazendo. É um compromisso que Brasília precisa ter de preservar o Cinememória, que é uma forma de preservar a história do cinema brasileiro e a história do cinema brasiliense, pelo acervo mais importante que tem. O Brasil tem uma tradição de queimar, destruir e menosprezar os seus arquivos. O Vladimir era um exemplo, não só como cineasta, mas como pessoa, cidadão — ele tinha essa preocupação. Ele que é, sem dúvida, o mais importante cineasta brasiliense. As obras mais importantes que ajudam a entender Brasília foram feitas pelo Vladimir, ele ajudou a formar todos aqueles outros depois que estão ajudando a fazer o cinema brasiliense forte, como temos hoje, ele tinha uma preocupação de reunir documentação sobre o cinema brasileiro e brasiliense para deixar para outras gerações. É trair a memória de um um dos grandes brasileiros, em nosso tempo, se isso não for feito; se a gente não preservar o Cinememória.
Olhares sobre Vladimir Carvalho
"Vladimir Carvalho é um amigo que eu via muito no tempo da universidade evejo pouco hoje em dia. No entanto, quando penso nele penso num amigo constante. Há pessoas que parecem engrandecer-se oir aderirem à luta pela justiça social; Vladimir é o tipo de sujeito que engrandece esses ideias, com sua adesão.E isso pode-se sentir em sua convivência, em suas conversas e em seus filmes".
Caetano Veloso, março de 2005, para o catálogo Vladimir 70, editado pela Objeto Sim
"Lembro-me de Vladimir Carvalho, o Rosselini do Sertão, Vertov das caatingas, Flatherty de Euclides, máquina voadora do pássaro preto, corte de Cascavel, discípulo do Santo Linduarte, o apóstolo de Geraldo Sarno, o poeta de Paulo Dantas".
Glauber Rocha, em Revolução do Cinema Brasileiro
"...acho que minhas ideias sobre um cinema brasileiro estão contidas numa espécie de diálogo que, com intervalos de alguns anos, mantive com Glauber Rocha e Vladimir Carvalho".
Ariano Suassuna, em Revista Bravo, março de 1999
"Vladimir Carvalho nos ensinou que, enquanto o procuramos em outros lugares, o cinema pode estar simplesmente diante de nossos olhos, à disposição. Vladimir e seus files, mesmo em situações adversas, não perdem a fé, nem o humor, dois estados imprescindíveis ao bom cineasta brasileiro. Tenho muito orgulho de estar a trabalhar no mesmo ofício que ele e de pertencer à sua geração desbravadora".
Cacá Diegues, cineasta em Vladimir DOC 8.0
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