Vladimir Carvalho desembarcou em Brasília em 1970 para dar um curso de três meses a convite de Fernando Duarte, então professor da Universidade de Brasília (UnB). O temporário virou permanente quando o cineasta, que já trazia na bagagem o curta A bolandeira, com o qual havia ganhado um prêmio no Festival de Brasília, aceitou o convite de Duarte para criar um núcleo de documentários na UnB. Vladimir tornou-se então professor da instituição, para a qual levou a convicção de que a vocação brasiliense era para a produção de documentários.
Uma cidade que nascera sob lentes e holofotes não poderia ter outro destino, na concepção do cineasta. E foi com essa visão que ele formou gerações de diretores egressos da Faculdade de Comunicação da UnB (FAC/UnB), mas também de outras instituições, já que a influência se estendia por toda a cena cinematográfica da cidade. Vladimir era um farol e um caminho para uma pequena legião de jovens que aspiravam desenvolver uma ideia munidos de uma câmera.
Destaque do cinema nacional com longas como Eduardo e Mônica, Impuros e Faroeste Caboclo, René Sampaio foi aluno de Vladimir na década de 1990. "Me ajudou desde o primeiro curta, emprestando equipamentos e doando ensinamentos. Além de meu professor, era um grande amigo", afirma o diretor.
René conta que Vladimir abriu portas para a caminhada como cineasta. "Eu fui suplente dele no conselho de cinema e vídeo — ele saiu por um período só para que eu pudesse também ser conselheiro de fato e entender como era a luta pelo nosso cinema. 'René, no cinema, nós somos do PCB, partido do cinema Brasileiro' dizia ele, bem sério", recorda.
"Uma parte fundamental de nossa memória se vai, com a partida de Vladimir", diz o documentarista Marcelo Díaz, que tinha o cineasta e professor como referência maior. "Uma referência, principalmente para nós que fazemos cinema documental no DF. Um batalhador do nosso cinema e pelo nosso cinema", destaca Díaz, diretor do longa Maria Luiza. Ele ressalta ainda a capacidade de Vladimir para além da câmera. "Uma personalidade de uma capacidade de oratória poética, nordestina e questionadora. Cada discurso era uma aula", afirma. "Lá em cima tem cinema dos bons hoje", reflete.
Para Cibele Amaral, Vladimir morreu jovem. "Ele gostava muito de trocar e dialogar com as novas gerações. Sempre descobrindo talentos novos de Brasília. Então foi assim que eu me lembro de ter conhecido Vladimir", conta a diretora de Se nada mais der certo. Cibele destaca ainda a capacidade de observação do cineasta e o olhar atento para as novas gerações e para a própria cidade. "Eu adoro os filmes dele. Tinha a capacidade de observar a cidade, o que acontecia em torno dele, movimentações políticas, sociais. Rock Brasília retrata um período em que eu era adolescente e foi muito bacana ver a história contada pelo Vladimir. O olhar dele era super jovem, ele não era um homem preso, tinha essa facilidade de se conectar com todo mundo", diz Cibele.
Homem de utopias
Professor da Faculdade de Comunicação da UnB (FAC/UnB), Pablo Gonçalo lembra-se das conversas que levavam o interlocutor a mergulhar na mágica do cinema e na seriedade da história. Ele gostava de dar carona para Vladimir, que "não dirigia carros, só filmes", depois de alguma sessão no Cine Brasília. "Se o tópico era antigo, ele se deleitava. Era capaz de descrever em detalhes a redação do JB, no Rio, onde ficava a mesa do Ferreira Gullar, reconstruir uma sequência de um filme do Rossellini, citar um trecho do Casa-Grande & Senzala, de quando não desligou a câmera e desafiou Oscar Niemeyer, uma cena do José Lins do Rego, como era a tela do cineclube que ele frequentou na Paraíba, do punhal de um cangaceiro que ele herdou. Uma estória puxava a outra", conta Pablo. "Foi um homem de memórias e de utopias; e deixa muitos ensinamentos — o legado de uma batalha e o charme de uma rara humildade — a uma geração de cineastas, de cinéfilos, de candangos."
Um dos principais trabalhos do diretor sobre Brasília foi o longa Rock Brasília — Era de ouro. No filme, diversos nomes da geração de 1980 da música da capital interagiram com o documentarista e perceberam o apreço que tinha pela história da cidade. "Vladimir documentou a luta pela democracia e liberdade de expressão e o documentário Rock Brasília nada mais era do que a extensão do registro dessa luta. Esse foi justamente o registro dessa luta toda que foi o norte de sua obra. Uma obra que viverá para sempre junto com a lembrança do amigo e eterno companheiro da verdade", diz Philippe Seabra, integrante da Plebe Rude.
Companheiro de banda de Seabra, André Mueller entende que o rock foi importante para Vladimir, mas o caminho inverso também ocorreu. O cineasta foi muito importante para o rock de Brasília. "Ter um documentário sobre o rock de Brasília feito por um cineasta do calibre político e social do Vladimir Carvalho só atesta a importância histórica e musical da nossa arte, como também nos dá credibilidade cultural. Sou grato e fã", destaca.
Em 2009, o cineasta Iberê Carvalho acabava de voltar de Cuba, onde ganhara um prêmio no Festival de Cinema de Havana. Vladimir fez questão de parabenizá-lo e não hesitou em telefonar. "Fiquei profundamente impressionado e lisonjeado com esse gesto de carinho, pois ele nem me conhecia direito. Esse era o Vladimir. O amor e a paixão que ele sentia pelo cinema eram contagiantes. Ele respirava cinema 24 horas por dia. A cidade de Brasília nasceu sendo filmada por suas lentes. Que sorte Brasília teve de ele ter escolhido nossa cidade para viver. O Brasil perde um grande mestre do cinema documental", lamenta Carvalho, diretor de filmes como O último cine drive-in e O homem cordial.
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