Brasília é cenário e inspiração para três escritoras da cidade que se debruçam sobre histórias conectadas com a capital em romances recém-lançados. Tatiana Nascimento cresceu no Núcleo Bandeirante e de lá trouxe o universo que rendeu Água de maré, vencedor da primeira edição do Prêmio Pallas. Dos apartamentos de classe média do Plano Piloto veio Bondade branca, de Gabriela Tunes, e um acidente traumático foi o ponto de partida para 108, de Mariana Surina.
São romances que tratam de personagens cujo trânsito passa por questões sociais, de gênero, raciais e até filosóficas. Gabriela Tunes começou a idealizar a personagem Lucila, de Bondade branca, depois de trabalhar na comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal. No órgão, recebia muitas cartas com denúncias de violações, a maior parte delas cometida no sistema carcerário. "O sistema prisional tem um sistema de comunicação muito por cartas, os presos escrevem principalmente para as mães. E aí a gente identifica que o sistema prisional pune as mães, elas são sempre submetidas a situações vexatórias, sofridas", explica "Li muitas cartas das mães para os presos. Essas cartas são chocantes, e eu pensei 'as pessoas têm que saber disso'. Não podia publicar, era sigiloso, mas o teor das cartas, eu podia."
Assim nasceu Lucila, cuja saga é narrada desde a infância, quando chega à casa de um casal de classe média alta de Brasília, ainda adolescente, para, supostamente, estudar. Menina pobre, a personagem acaba sendo explorada e vive algumas tragédias antes de chegar a um final que é, de certa forma, esperançoso. "Construí esse arquétipo dessa menina que vem com a promessa de estudar de uma família branca que, teoricamente, a acolhe, mas que a coloca num quartinho de empregada para trabalhar. E ela acredita que foi agraciada. É uma saga que começa nos anos 1980 e vem até os dias de hoje", explica a autora, que também se inspirou nos escritos de bell hooks e de Lélia Gonzalez para escrever o romance.
As relações de exploração que, com frequência, se repetem no ambiente do trabalho doméstico no Brasil eram um dos focos da autora. "Eu queria falar dessa relação interracial dentro das casas, com essas mulheres morando nesses quartinhos de empregada, num esquema de semiescravidão, que vivem a vida de outra família que não é a delas e, quando acontece qualquer problema um pouco mais grave, como no livro, essas pessoas são chutadas, cuspidas e não há um laço que permaneça. Essa mulher é vítima de muita violência e tem uma vivacidade, uma alegria", conta.
O sistema carcerário também está presente em Água de maré, de Tatiana Nascimento. No romance, duas irmãs lésbicas e tão diferentes quanto Exu e Odoyá lutam para compreenderem as próprias origens e destinos. "É uma história sobre vários tipos de laços, afetivos, religiosos, e sobre a água", avisa a autora, que nasceu em Brasília, tem 43 anos e levou uma década para escrever o romance. "É sobre esse processo das duas pessoas se entenderem na lesbiandade e depois sobre o processo de transacionamento que uma delas vive, tentando entender o sistema carcerário. E tem muito a ver com a umbanda, a presença na comunidade." Traficante, uma das personagens acaba presa, o que é determinante para a narrativa.
Água de maré é, na descrição da própria Tatiana, um romance sobre duas pessoas lésbicas negras, que não são ricas e vivem na periferia de uma cidade periférica. Dentro das limitações financeiras e materiais que rodeiam as personagens, elas tentam viver uma vida digna, de amor, regida pela fartura e pela alegria. "É um livro muito inspirado na oralidade, e a comunidade é muito importante para o sujeito. A ênfase é na noção de que a comunidade viabiliza a ideia do sujeito. E quando as irmãs são separadas, porque uma vai presa, elas acham uma forma de ficar juntas", conta a autora, que bebe nas histórias das culturas africanas, especialmente a iorubá, para construir a narrativa e as personagens.
Autoficção assumida
O limite entre a ficção e a realidade, de certa forma, criam uma dinâmica especial em 108, o segundo livro de Mariana Surina, 44 anos. Foi um acidente, um atropelamento enquanto andava de bicicleta, que a levou à narrativa. Mas é para uma espiritualidade marcada pelas práticas contemplativas do zen budismo que ela quer conduzir o olhar do leitor. Mariana era gestora de políticas públicas, carreira do serviço público considerada de prestígio, quando foi atropelada e decidiu largar tudo para ir viver num ashram em Portugal.
Não era a primeira vez que a autora viajava para temporadas de retiro espiritual, outras experiências passageiras haviam rendido o relato de viagem O mundo sem anéis — 100 dias em bicicleta. Agora, no entanto, a experiência era definitiva e 108, gestado durante seis anos, seria uma maneira de falar sobre a escolha. "Eu gosto desse espaço que é borrado entre a ficção e a biografia, esse lugar que não é muito claro. E, para mim, às vezes, não é muito claro. Criando uma ficção autobiográfica também me coloquei no lugar de uma literatura mais imaginativa", conta. "A maior dificuldade do livro foi a investigação de uma linguagem para falar de espiritualidade que fosse literária e que pudesse se localizar num espaço de sutileza. Que não fosse professoral, mas que pudesse trabalhar em camadas."
Mariana queria escrever algo que fosse minimalista, mas não seco. Que tivesse alguma poesia e algum afeto, mas sem excessos. E que permitisse ao leitor uma certa profundidade espiritual. Tomar emprestadas algumas características do zen budismo foi uma solução. "O zen budismo apresenta muitas histórias curtas que não têm uma resolução e isso sempre me agradou. Então o livro parte dessa estética. E quando você faz essas práticas contemplativas acaba absorvendo um pouco dessas recitações, algo mais minimalista, porque não são muitas coisas que acontecem", avisa.
Miscelânea com cara latina
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB), Hilan Bensusan havia escrito um diálogo entre uma refugiada e um estrangeiro saído diretamente das histórias de Platão há alguns anos, mas não sabia ao certo o que fazer com o material. Quando outros personagens apareceram vindos diretamente de países como México e Colômbia, o autor enxergou o esboço de História sul-americana da imortalidade a partir de rumores com sotaque. Escrito em forma de diálogo, o livro se baseia na dinâmica da contação de histórias na qual cada personagem assume a voz em primeira pessoa. E é sobre a noção de vida, morte e imortalidade que eles querem falar.
Uma mexicana prestes a atravessar uma fronteira conta a história de uma refugiada do norte da África que encontra um estrangeiro dos tempos de Platão que há muito deveria estar morto e enterrado. O homem quer voltar para a cidade natal, mas ela não existe mais. A refugiada quer escapar da tragédia, mas está prestes a se deparar com o caos e o indefinido. "Morte e vida são coisas que têm uma luz nova em cada época. E a gente vive uma época de muitas fronteiras, fronteiras muito marcadas. E tem a coisa da refugiada que é muito mais estrangeira do que o estrangeiro. Ele é um personagem definidor na história do Ocidente, mas não é ninguém porque não tem papéis, não tem um celular, não tem como provar, não está inserido", explica Bensusan. "Então essa coisa de não estar inserido no grupo marca a maneira como o Ocidente vive, marca quem está incluído e quem não está. E pensar na vida e na morte hoje significa pensar nisso, os refugiados cada vez aumentam mais. A população humana hoje é marcada consideravelmente pelas populações dos refugiados, forçadas a estar num estado de sempre espera."
108
De Mariana Surina. Longe, 164 páginas. R$ 60
Bondade branca
De Gabriela Tunes. Terra Redonda, 376 páginas. R$ 118
Água de maré
De Tatiana Nascimento. Pallas. Publicação em 2025
História sul-americana da imortalidade
a partir de
rumores com sotaque
De Hilan Bensusan. Cultura e Barbáries, 136 páginas. R$ 48
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