Fazer a diferença, num plano de posicionamento socioambiental, ou ao menos tomar pé de situações extremas e problemáticas, mas com horizontes de soluções. Essa é a proposta dos 39 filmes da 13ª Mostra Ecofalante de Cinema, a partir de hoje, exibida no Cine Brasília (EQS 106/107). Títulos como Plastic Fantastic, da alemã Isa Willinger, que mostra a invasão de poluentes em rios e oceanos, e Onde a floresta acaba (de Otávio Cury), sobre a violenta morte de Dom Phillips, no Vale do Javari, em 2022, depois de inúmeras expedições para denúncias de crimes ambientais, fazem parte de um painel composto por produções apresentadas em importantes festivais como os de Cannes, Berlim, Sundance e Visions du Réel (Suíça).
Entram em cena, na Ecofalante, temas como transformações climáticas, situações de comunidades periféricas, realidades de agricultura regenerativa, dados de saúde e atitudes de responsabilidade social. Neste último quesito encaixam-se o longa Não existe almoço grátis (de Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel) que trata da disposição das lideranças de cozinhas solidárias comandadas pelo Movimento dos Trabalhadores sem Teto e, comandado pela dupla feminina Alice Gouveia e Graciela Guarani, Sekhdese, filme que mostra Brasília como centro para o registro de transformações do papel das mulheres na liderança de nações indígenas.
Com entrada gratuita, a mostra se estende até 9 de outubro, contando, ao lado de fitas estrangeiras, com produções locais como A chuva do caju (de Alan Schvarsberg) e Kwat e Jaí — Os bebês heróis do Xingu (de Clarice Cardell), filme na linha da mitologia indígena e que inclui animações. Mas, depois do dia 10 de outubro, com sessões no Sesc do Gama, e até o dia 13, o evento se estende, alcançando ainda circuitos de escolas e universidades do DF. Em novembro, a programação chegará a UnB (Universidade de Brasília). Longas-metragens fundamentados por pesquisas, como Solo comum, de Josh e Rebecca Tickell, premiado em Palm Spring e Tribeca, traz associações de personalidades como Jason Momoa, Laura Dern e Woody Harrelson na difusão de temas renovadores da ciência e da tecnologia. Rebecca tem a curiosa trajetória de ser atriz, desde O natal mágico (1989), e de abraçar causas ambientais, na direção de filmes como Petróleo: o grande vício e Solo fértil.
O impacto cultural de regiões brasileiras está patente no longa O Bixiga é nosso!, título que traça reivindicações de grupos afrodescendentes em meio à comunidade sempre atrelada (na lembrança) aos imigrantes italianos. Noutro panorama histórico, desenvolvido em meados dos anos de 1980, o longa colombiano Amor, mulheres e flores (do casal Jorge Silva e Marta Rodríguez) revela condições pesadas para o trabalho feminino, enquanto Ramona (feito na República Dominicana) destrincha peculiaridades de vidas indissociáveis à maternidade. Vida e morte se encontram ainda em A transformação de Canuto (vencedor no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de melhor direção, fotografia e roteiro com temática afirmativa), ancorado pela tradição Mbyá-Guarani, que funde brasileiros e argentinos, dominado pela lenda de homem transformado em onça.
Se há bloco de produções interessado no exame de potenciais novos riscos com o cotidiano de mineradoras (visto em Rejeito, de Pedro de Filippis), eventos passados como as consequência do rompimento da barragem de Brumadinho estão documentados no curta Água rasa. Numa trajetória de denúncia, Animal, do francês Cyril Dion, mostra a sistemática atuação dos jovens ativistas Bella e Vipulan em busca da mobilização de redes de apoio, mundo afora. A força do sindicalismo pontua o filme Union, no qual se mostra uma corporação que amarga ampla derrota frente à efetivação de cenário favorável a direitos específicos de trabalhadores. Tecnologia, ciência e saúde entram como coordenadas para alguns filmes da Ecofalante: em Tik Tok Boom, paira o tema da exploração desmedida de recursos do famoso aplicativo e, em Knit's Island, desponta a luta pela sobrevivência virtual, em meio à comunidade unida por intrigante jogo de vida e morte. Outro título que abraça modificação social é Samuel e a luz (vencedor, na Mostra Internacional de Cinema). Esse longa de Vinícius Girnys, feito em coprodução franco-brasileira, reflete sobre a chegada da eletricidade para vilarejo em Paraty (RJ), conhecido como centro de pecadores e renomado pela atração de levas turísticas.
Duas perguntas/Mariana Lacerda
Oficialmente, a Ecofalante será aberta por Mapear mundos, com sessão, hoje, às 19h, no Cine Brasília. Mariana Lacerda, a diretora, examina o impacto de indigenistas, antropólogos e sociólogos num caminho que levou à fundação do Instituto Socioambiental (Isa). O despontar de organizações da sociedade civil, vale lembrar, respaldaram indígenas para um terreno de acolhimento e discussão de propostas que contemplassem direitos e freassem o indiscriminado avanço de brancos sobre reservas naturais.
Há utopia na esperança por melhores condições para os indígenas?
O filme narra uma conquista histórica dos povos indígenas. Mas fica evidente que as lutas de ontem são também as de hoje. Os direitos dos povos indígenas, por mais que estejam garantidos e assegurados em um texto constitucional considerado como um dos melhores do mundo, ainda não são plenamente garantidos pelo Estado brasileiro. Portanto, a luta indígena é permanente. Os povos indígenas garantem a preservação do planeta, devido aos seus modos de vida tradicionais. Aliar-se à luta indígena é aliar-se à possibilidade de continuarmos vivendo em um lugar, diante da emergência climática.
Quais dados mais te surpreenderam na realidade presente no discursos dos indigenistas?
Ao estar diante da história de Beto Ricardo (um dos fundadores do ISA) e Fany Ricardo (assessora do Programa Povos Indígenas no Brasil), me dei conta que não se tratava de narrar a trajetória dos dois, embora os dois conduzam o filme. Tratava-se mesmo de narrar a história da rede que eles articularam e articulam para organizar as informações sobre os povos indígenas no Brasil. Impressionam também as narrativas que nos dão a ver as alianças entre os indigenismo e o movimento indígena já tão fortes desde a década de 1980. É conhecida a frase que a "política é a arte do possível". Eu diria que cabe à política imaginar o impossível. Penso que Beto Ricardo e a rede que ele conduz e ajudou a compor imaginaram o impossível e, desta maneira, ao lado do movimento indígena, conseguiram uma vitória histórica, que foi a inclusão do Capítulo dos Índios na Constituição de 1988. O filme deixa claro ainda que é papel da sociedade civil contribuir e fortalecer a luta dos povos indígenas, que é também a luta pela nossa sustentação do planeta e a nossa habitabilidade nele.
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