O maior desafio de Yara de Cunto no processo de criação do espetáculo A escultura foi olhar para a própria trajetória. Quando topou a proposta de Adriano Guimarães de criar uma performance na qual pudesse contar sua história, ela também concordou em contribuir na construção do texto que serviria de base para a dramaturgia. "Levei um susto quando comecei a contribuir para os textos. Eu contava e relatava, isso é uma coisa desafiante, porque tem de ultrapassar algumas barreiras da sua vida, de momentos passados, das emoções. Então relatar isso é complicado", conta a coreógrafa, um dos nomes mais importantes da dança contemporânea de Brasília e protagonista do espetáculo em cartaz no Teatro Sesc Paulo Autran.
Em parceria com Giselle Rodrigues, que também participa de A escultura, Yara foi a fundadora do grupo BaSirah — Núcleo de Dança Contemporânea, nascido em 1997 e ganhador de três prêmios da dança Klauss Viana. Nascida em 1939 em Ponta Grossa (PR), se formou pela escola de balé clássico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro aos 14 anos e logo passou a integrar o corpo de baile da casa. Em seguida, fez parte do Balé do IV Centenário de São Paulo, considerado o primeiro grupo de dança contemporânea profissional da capital paulista, fundado em 1959 para celebrar os 400 anos da cidade. Yara integrou ainda o balé do Masp.
Leia também: Com apenas três anos de carreira, Ana Castela é indicada ao Grammy Latino
Muito jovem, ela também estudou teatro com a atriz Henriette Morineau e atuou ao lado de nomes como Tônia Carrero e Rubens Corrêa, mas foi na dança que se destacou ao criar, em 1969, o Balé Teatro Guaíra, até hoje uma das companhias de dança contemporânea mais importantes do país. Yara veio para Brasília nos anos 1990 e, na capital federal, passou a atuar por trás dos palcos, como coreógrafa do BaSirah e de outras companhias da cidade. "Ela tem um passado incrível", explica Adriano Guimarães. "Na peça, ela vai tentar reviver alguns momentos da vida dela. A gente vai refazendo, em cena, da maneira dela. É a vida dela vista também pelo meu ponto de vista e pelo ponto de vista da Giselle Rodrigues."
No palco, Yara revive o próprio nascimento na primeira cena de A escultura, traz as primeiras lembranças da dança e das aulas de balé. "Ela se lembra de ter dançado pela primeira vez aos 8 anos, na escola. A gente vai até a chegada dela em Brasília", avisa o diretor, que quis trazer para o espetáculo uma reflexão sobre palco e envelhecimento. "Basicamente, uma pergunta que a gente se faz é por que sair do palco com determinada idade? No balé clássico, elas se aposentam com 40 e poucos anos. E é isso. Então queremos trazer de volta e ver o que é possível que se faça assim, que tipo de poética isso pode gerar", diz.
Leia também: Série sobre Anderson Silva é indicada ao Emmy Internacional 2024
Aos 85 anos, Yara conta que perdeu a visão de um olho e que a capacidade de enxergar do outro lado é reduzida, mas as limitações estão longe de serem impeditivas. "Eu tenho todas as dificuldades, podia estar em casa quietinha. Além do que, perdi uma vista, tenho pouca visão, o que é um limitador. Mas eu tento vencer isso e continuar minha vida. Já fiz algumas outras interferências em cena e essa está sendo a mais difícil porque é todo o espetáculo", conta a coreógrafa, que criou, com Giselle Rodrigues, toda movimentação cênica de A escultura.
Essa não é a primeira vez de Yara de Cunto em cena com um espetáculo de Adriano Guimarães. A primeira parceria ocorreu em 2013, quando a coreógrafa fez parte de um projeto sobre Samuel Beckett no qual ela realizava uma performance no escuro. "Aí começou uma espécie de parceria mesmo", lembra Adriano.
Leia também: Shows de jazz agitam a região do lago do Parque da Cidade neste sábado
A coreógrafa participou ainda de Arte sem palavras 1, outra vez encenando um texto de Beckett sobre um homem que luta em condições adversas no deserto. "Já era uma metáfora sobre envelhecimento e limitações impostas pelo tempo. De lá para cá, ela perdeu 80% da visão, mas não perdeu a expressividade. E veio a ideia de fazer um trabalho sobre isso. A escultura é uma mistura de dança com teatro e tem um caráter mais performático no qual ela vai executando os procedimentos", diz o diretor. A própria Yara forneceu os elementos para a construção do texto e a dramaturgia ficou dividida entre Adriano e Giselle, responsável pelo repertório de movimentos corporais da peça.
A ideia é explorar toda a capacidade expressiva e narrativa de Yara tanto do ponto de vista corporal quanto de projeção narrativa. Giselle Rodrigues também aparece em cena como uma espécie de guia e orientadora que conduz a bailarina pelo palco. "Foi uma surpresa muito grande. Na performance anterior, a gente fazia tudo no escuro. O Adriano se inspirou um pouco nisso e resolveu fazer uma peça inteira. Fiquei emocionada, bateu no coração. Eu acho que está lindo", avisa Yara.
A escultura
Espetáculo de dança e teatro com Yara de Cunto. Direção: Adriano Guimarães. Participação de Giselle Rodrigues. Hoje, amanhã e quarta, às 20h30, no Teatro Paulo Autran (Sesc Taguatinga).