Estou deitada no chão acarpetado. Devo ter entre 7 e 8 anos. Encaixo meu corpo de menina de uma forma que a cabeça fica embaixo da mesa de cabeceira entre duas camas. Converso com Deus. Um diálogo silencioso. Um vasculhar por respostas, sentido, escuta. Uma garotinha trancada em si. Inquieta pelas ausências.
Sempre esperei por uma resposta. Algo que me tirasse da solidão. O fardo de ser uma criança que não conseguia se misturar com as outras. A herança de construir uma versão de si para agradar ao outro. Para ser aceita. Para ser alguém. Ainda na sombra. Sobrevivendo pelas frestas. Respirando para encontrar seu sol.
Percebo que, ao escrever, ainda sigo conversando. Não sou mais a menina deitada no chão com os olhos voltados para o fundo da mesa de cabeceira. Sou uma mulher que escreve. Alguém que flerta com Deus pelas palavras empunhadas. No amparo que as letras provocam existe um grito ecoando. Ele se esgueira pelos cantos, amplifica, ressoa. A potência da trilha percorrida pelas composições escritas não me assusta. Produz, estranhamente, conforto. O sopro suave de quem se acostumou à dureza do chão.
Relacionando-se com o divino
A poeta Adélia Prado acredita que o texto é uma forma de se relacionar com o divino. Um estado poético atingido por quem se dedica à labuta de compor a própria vida com a união entre as vogais e as consoantes. Dessa forma, ao escrever, me exponho. E, ao ter minhas palavras retiradas de falsas vestes, me coloco diante de quem? De mim.
Ao longo da vida, repetidas vezes, me coloquei embaixo da mesma mesa de cabeceira. Sentada no chão gélido do banheiro. Deitada na cama afundada em travesseiros. Caminhando sem horizonte pela rua cercada por rostos desconhecidos. No sofá macio e inerte da sala… do analista… da casa vazia. Quando entendi que a escrita era a travessia, minhas conversas escapuliram do vazio. Firmaram-se nas palavras cravadas em superfícies planas e justa.
Não sou mais a menina no chão encaixada abaixo da mesa. Acuada. Solitária. Assustada. Dividida. Confusa. Tenho agora as palavras. Companheiras de diálogos espalhados, feito vento que antecede a chuva. Ora redemoinho, ora brisa de verão. Leva. Faz voar. Limpa. Baila. Tira do eixo. Não pede licença. Sussurra. Sacode. Embriaga. Refresca. Descabela. Movimenta. O texto, agora sei, carrega o que tenho de mais divino. Um estado poético chamado alma.
Por Ana Holanda – Revista Vida Simples
Encontrou na escrita sua forma de oração, em textos, livros e nos cursos que ministra por aí.
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