A história de vida do professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e um dos criadores do curso de cinema pioneiro, no Brasil, na Universidade de Brasília, Jean-Claude Bernardet extrapola a narrativa de Wet mácula (livro coescrito por Sabina Anzuategui), feito a partir de entrevistas com Bernardet, sob organização de Heloisa Jahn. Dono de uma relação muito passional com Jean-Claude, o diretor Kiko Goifman (autor do novo clássico FilmeFobia que rendeu a Bernardet o prêmio Candango de melhor ator), vê o amigo como um ser humano ousado e moderno, além de sempre disposto "Aos 88 anos, ele está vocacionado a novas aventuras. Ele não quer se repetir. Há uma auto-proposta de se desafiar. Isso, além de maravilhoso, o torna uma pessoa instigante", diz Kiko.
Belga, intelectual; no passado, cassado politicamente e soropositivo, Jean-Claude nunca quis servir ao papel de vítima. Com 75 anos de Brasil, ele gozou de intimidade esporádica de mestres como Glauber Rocha, Leon Hirszman e Nelson Pereira dos Santos. A partir da exibição de 20 filmes, apresentados, de graça, no CCBB, é possível ver a interação dos elementos da mostra sob curadoria de Andréa Cals, Bernardet e o cinema, entre os dias 16 de agosto e 5 de setembro.
"Considero a contribuição do Jean-Claude para o cinema como gigantesca e essencial. Durante décadas, com as críticas e análises de filmes, Jean-Claude estabeleceu um diálogo com cineastas: ele afetou, por exemplo, o cinema de Glauber Rocha, afetou o cinema de Eduardo Coutinho. Então são ícones! Quando ele escrevia alguma coisa a respeito deles eles, havia o pensavam (em retribuição): tem filmes que foram feitos em resposta a comentários de Jean-Claude. Há participação dele como diretor, e ele atua em tudo: crítico, ensaísta, professor — é um homem múltiplo", pontua Goifman.
Com 25 livros publicados, e passagens em instituições importantes como o Instituto Goethe, Bernardet mobiliza esforços atualmente de diretores como Taciano Valério, com quem trabalhou por três ocasiões. "Há força na dimensão de se reinventar e ainda no contato, ou seja, a inflamação dos afetos que ele traz. Bernardet traz partilha, acolhimento e expõe críticas. Mas traz a novidade de encanto. Com ele, há a possibilidade de formular sensações, conceitos, criar, vibrar e, no final das contas, fechar aquela obra (proposta) com início, meio e fim", comenta Taciano Valério.
Na mostra do CCBB, haverá projeção de O caso dos irmãos Naves (1967), feito em parceira com Luiz Sergio Person; Fome (2015), obra com Cristiano Burlam, e o autor do clássico Brasil em tempos de cinema (1967), ainda desponta, criativamente, em Brasília: contradições de uma cidade nova (de Joaquim Pedro de Andrade) e em #eagoraoque, feito ao lado de Rubens Rewald, em 2020.
Entrevista // Jean-Claude Bernardet, ator e teórico de cinema
O que considera mais relevante na experiência do curso de cinema da UnB?
Foi o primeiro curso universitário de cinema. Existia o curso de comunicação, mas de jornalismo. Isso correspondeu a uma atualização da universidade. Neste sentido, em Brasília houve pioneirismo. Lembro que estávamos sempre pressionados pela reitoria, havia polícia presente. Vivemos inúmeras greves. Eu dava aulas à noite para não furar a greve. Queria manter contato como os estudantes. Nisso vejo a importância. O Paulo Emílio Salles Gomes era o professor dirigente. Ele nos orientava, discutia as aulas conosco. Por questões das produções de filmes, o Nelson (Pereira dos Santos, também professor) estava muito ausente. Mas ele fez uma coisa notável: o departamento não tinha dinheiro para produzir filmes. Então ele criou, com os alunos, uma produção sem película. Eles passaram pelas etapas de criação de argumento, do roteiro, direção de arte, filmagem, direção de atores e etc. Tudo isso sabendo que, depois de tudo, não haveria montagem: não havia película. Curiosamente, o Nelson teve uma força muito grande e conseguiu mobilizar os alunos para fazer um filme que não existiria. Foi uma experiência pedagógica notável.
Como se descolou da abordagem sociológica e aderiu ao cinema mais experimental?
Não optei por ser ator: recebi convites. Estou com uma porção de livros lançados inclusive. Com, Sabina (Anzuategui) trabalho num próximo romance. Não sei se houve bem uma transformação. Esses filmes mais recentes decorreram de convites, depois da minha aposentadoria. Daí, eu continuei. Eu e o Fábio Rogério temos realizado coisas que eu chamo poemas. Com o primeiro, chamado Cama vazia, entramos em 40 festivais. No próximo Festival de Curtas Internacionais, vamos apresentar A última valsa. Temos mais alguns em preparação futura: um como homenagem a Abbas Kiarostami e o outro se chama Carga. Trazemos associações de imagens e de sons.
Em O corpo crítico, o senhor se revela bravo, lutador e resistente. Nesta conjuntura, qual o papel da morte no seu imaginário?
Não sei te responder com maior precisão. Mas, atualmente, trabalho isso com o Fábio Rogério em filmes como o Cama vazia, que é praticamente a morte de um paciente num hospital. No A última valsa, sabe-se que não haverá outra é a morte. Não tenho medo da morte, ainda que venha a incerteza de como ela chegará, se haverá sofrimento, não estou disposto a ficar por seis meses num hospital. Tem uma carta que foi assinada por mim, por minha filha e um médico sobre uma série de procedimentos médicos pelos quais não posso passar. Não posso ser entubado, há limitações. Absolutamente, não quero prolongar a minha vida, tenho tratado disso, em vários textos e, inclusive, filmes. Está dito o seguinte: a longevidade é um produto industrial. Não tenho nenhuma atitude religiosa em torno da vida. Não há isso: vive-se e morre-se.
Houve avanço nas contradições de Brasília, desde o filme de 1967?
Por que trouxemos (à época) contradições? O plano prevê um Plano Piloto. Tinha vivido algum tempo em Brasília e o Joaquim Pedro (de Andrade, diretor) e eu defendemos que a cidade seria um núcleo urbano cercado por periferias e favelas, como as cidades latino-americanas. Não poderia escapar, magicamente, do desígnio das outras cidades. O traçado urbano é diferente: mas a miséria está lá, nas cidades dos arredores.
Paris, com as Olimpíadas revelou uma festa de encerramento repleta de dispositivo de maravilhamento e fotogenia. Isso conversou com feitos de Leni Riefenstahl?
Lembraria a você que ela fez o filme O triunfo da vontade (1936) com coreografias dela e que é um grande elogio ao hitlerismo. Inclusive, em 1936, quando faz os filmes sobre as Olimpíadas, ela filma a retirada de Hitler por racismo e tem neste final dos anos de 1930 e início dos anos 1940, uma certa preocupação em filmar os movimentos do esporte. Acho que ela é a primeira a colocar a câmera no chão e filmar o pé dos corredores, por exemplo. Como o pé se apoia no chão e se dobra. São inovações dela. Entretanto, ela não deixa de ser uma hitlerista. E uma hitlerista militante.
Como foi mudado o consumo do cinema?
Não vou muito ao cinema por estar quase cego. Vou com amigos e, em geral, a sala está quase vazia. Como eu assisto aos filmes brasileiros, às vezes, tem quatro, cinco pessoas. Então, isto está fadado ao desaparecimento.
Quais tuas obras mais relevantes, dentro da mostra?
Não consigo achar trabalhos mais relevantes. Acho que, se levanta o interesse das pessoas, tendo a achar legal. A consistência de uma obra não está em si, mas na consistência social. Eu detesto classificações. Não existe para mim o maior e o menor filme.
Mas há títulos que chegam a influenciar, apontar caminhos até mesmo para o senhor, enquanto espectador?
Há filmes que provocam sentimentos fortes, sim. A doce vida (1960), de Federico Fellini e O anjo nasceu (1969), do Julio Bressane.
Há tecnologias no cinema que te auxilie, digo, audiodescrição?
Não. Eu sei que existem, eu ia fazer até um teste na França. Aqui não sei se existe audiodescrição [Estão instituídas, com falhas, há anos no país]. Comecei a ficar cego, em 2005, e, naquela época, sei que não existia. Mas, em Paris já havia. Nunca tive esta experiência, porém.
Qual o impacto da nova velocidade nas formas virtuais como a do TiKTok?
Eu estou cego: nunca vi o TikTok. Eu me sinto, evidentemente, um pouco fora do tempo. Mas é uma questão física. Praticamente, não tenho contato com estas formas de expressão atuais. Eu me informo na medida do possível. Sigo noticiários como ICL, a Revista Fórum e o Brasil 247. Não posso navegar na internet: é absolutamente impossível.
Lecionar te deu prazer; mas houve aprendizado com os diretores que te inspiram quê de gratidão?
Quando você está aposentado, a vida não fica mais ritmada no cotidiano. Tinha uma vida muito estruturada em horários de aulas, deveres, preparações, pesquisas e escritos, além de muitos convites para festivais. Com a aposentadoria, tudo isso desmorona. E aí tem que se catar dentro de você a energia pra você estruturar a vida. Nada vem de fora. Há exigências. No sentido de gratidão, pessoas como Kiko Goifman, Rubens Rewald e Taciano Valério, entre outros, são muito importantes para mim. Acabo de fazer um filme com o filho do Kiko, o Pedro, está adiantado. Claro que meus papeis são de idosos. Pedro, filho do Kiko, me conhece desde os 10 anos; no filme, é como se eu fosse o avô dele.
Confira início da programação:
* Dia 16 de agosto: às 19h, abertura, com apresentação da mostra pela curadora Andréa Cals. E os filmes: Brasília: contradições de uma cidade nova, de Joaquim Pedro de Andrade (1967) e #eagoraoque, de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald (2020).
* Dia 17 de agosto: às 16h15, Sobre os anos 60, de Jean-Claude Bernardet (1999) e São Paulo Sinfonia e cacofonia, de Jean-Claude Bernardet (1994). Às 17h45, Cama vazia, de Jean-Claude Bernardet e Fábio Rogério (2023); A destruição de Bernardet, de Claudia Priscilla e Pedro Marques (2016) e ainda debate com a presença da professora de filosofia da UnB Raquel Imanishi e do professor e o crítico de cinema Sérgio Moriconi
* Dia 18 de agosto: às 17h30, A última valsa, de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet (2024) e Crítica em movimento, de Kiko Mollica (2004) e às 19h, A navalha do avô, de Pedro Jorge (2013) e Antes do fim, de Cristiano Burlan (2017).