despedida

Calaf fecha as portas e se despede do público brasiliense

Um dos espaços icônicos da cidade, o Calaf se despede, nesta terça-feira (30/7), do público brasiliense. O tradicional samba do 7naRoda é responsável pela última dança dos "calafeiros"

O Calaf Brasília está fechando as portas, dessa vez, de forma permanente. Após um encerramento que durou quatro meses em 2022, um dos principais redutos culturais da cidade dá adeus definitivo ao público brasiliense na noite desta terça-feira (30/7). A partir das 20h, o local recebe os “calafeiros” de plantão para uma última dança — o tradicional samba do 7naRoda, responsável por animar as terças do espaço há 17 anos. 

Inaugurado em 1990, a casa leva o nome do proprietário Venceslau Calaf, nascido no Rio Grande do Sul, mas morador da capital desde 1962. Com experiências na área gastronômica — a família de Venceslau era responsável por um restaurante na 105 Sul —, o gaúcho decidiu criar o boteco, sem nem imaginar o futuro promissor. O ponto de virada do local veio nos anos 2000, quando o bar deu início às feijoadas com música nos fins de semana.

Desde então, foram milhares de festas, trilhas sonoras e gerações que ficaram marcadas pelo conhecido ponto do Setor Bancário Sul. Tamanho sucesso, no entanto, foi interrompido pela chegada da pandemia da covid-19, mudando os rumos de uma história de 34 anos que ficou para sempre registrada na cena cultural da cidade. Durante o lockdown, o espaço precisou se manter fechado, seguindo as determinações previstas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e reabriu apenas após a liberação das autoridades.

O baque da pandemia, porém, havia sido muito forte. Em março de 2022, o Calaf anunciou o encerramento das atividades, devido a problemas financeiros acarretados pelo período. Os brasilienses receberam a notícia com comoção, aderindo à longa programação de despedida, com direito à casa lotada. Os meses de portas fechadas acabaram sendo um alívio financeiro para a família proprietária, que conseguiu sanar débitos e organizar as dívidas do espaço. 

Com os problemas mais urgentes solucionados, o apoio da clientela fiel e o avanço da vacinação e controle de casos de covid-19, foi anunciada a volta do Calaf. A expectativa era otimista, porém, exatamente dois anos após a volta, a casa se vê obrigada a fechar as portas, agora de forma definitiva. “Quando as atividades culturais e de aglomeração voltaram a ser permitidas, nós decidimos reabrir e tentar a recuperação. Porém, tivemos muitos gastos durante o período de isolamento social, uma vez que mantivemos nossos funcionários ao longo desse tempo”, explica a família Calaf.

“Sempre concordamos com a necessidade das medidas de isolamento social e buscamos diminuir ao máximo o impacto para nossa equipe. Com isso, tivemos muitos gastos e infelizmente não conseguimos nos recuperar, mesmo com a retomada das atividades. O modo como funcionamos, com a maioria da equipe sendo de funcionários de longa data, CLT, não nos permitiu concorrer no atual cenário cultural”, complementa.

Contudo, Venceslau e as filhas também responsáveis pelo local, Priscila, Paula e Luiza, garantem que os últimos 24 meses renderam bons frutos ao Calaf. “Tivemos novos encontros de roda de samba, como o Samba União, o Samba da Passarinha, o Samba Pinçado, a Cumieira, entre outros. Também mantivemos festas tradicionais, como a terça-feira do 7naRoda, nossa parceira desde o início do Calaf, a Emopalooza e outras. Realmente, somos muito gratos a tudo que a cultura do DF e nossos parceiros de trabalho nos permitiram viver”, destacam.

Legado

Passado de pais para filhos, o legado do Calaf continuará vivo por meio das lembranças dos que já passaram por lá. “A minha mãe conhecia o Calaf, meu pai sempre ia lá, então era engraçado começar a frequentar  um espaço de festa que os meus pais, como adultos, também frequentavam”, conta o engenheiro ambiental Leon Mortari, 25 anos. Ele lembra que, na primeira ida ao boteco, o DJ da ocasião era um colega de trabalho da mãe. 

Para Leon, mais que uma casa de festas, o ponto fez parte da descoberta de sua sexualidade. “O Calaf foi um espaço de diversidade para mim. Eu me assumi gay no 3° ano do Ensino Médio, quando eu tinha 17, e esse foi o espaço que me fez ver que tinham outras pessoas que também eram gays, parte da comunidade LGBT, simpatizantes”, relembra. 

Foi lá, por exemplo, que o engenheiro conheceu o primeiro namorado. “A minha relação com o Calaf era muito curiosa. Durante os seis anos que eu frequentei esse espaço, não era a única casa de festa que existia em Brasília, mas eu não fazia questão de buscar outras coisas, porque aquilo ali já me supria muito bem”, pontua. “Não era um rolê pelo rolê, tinha um viés político envolvido, uma discussão feminista, LGBT, e era muito gostoso estar nesse olho desse furacão, porque a gente via muita gente crescendo e produzindo coisas maravilhosas ali”, detalha.

Desde o fim temporário das atividades, em 2022, Leon tem se aventurado por outras casas de festa de Brasília, sem conseguir replicar o sentimento trazido pelo espaço do Setor Bancário. “Eu vou em outras festas, mas nada se compara ao Calaf. Era uma proposta muito diferente, plural e diversa, que eu não vejo nesses outros lugares que frequento. Eu realmente acho que o Calaf, para minha geração, foi uma coisa muito especial, que talvez não será visto aqui em Brasília novamente”, avalia. 

“Fico triste pelo fechamento, mas muito honrado de ter participado desse movimento todo e de poder ter vivido o que o Calaf proporcionou. É uma pena para quem não teve essa experiência e para as gerações que não vão conhecer a potência que o Calaf”, acrescenta.

Assim como as histórias de filhos influenciados pelos pais, existem também as história dos pais influenciados pelos filhos. É o caso de Cecília Soares, de 60 anos. “Fui muitas vezes junto com meus filhos, e amigos deles, ver o 7naRoda. Nesse samba, eu me sentia solta, feliz e resgatava uma carioquice, mesmo longe do Rio há muitos anos”. A servidora pública aposentada ia ao Calaf à convite dos filhos André Soares, 30, e Bruno Soares, 25. “Me lembro de ser convencida pelos meninos a ir ao Calaf em dias que eu estava chateada. Servia como "remédio", principalmente por estar com eles”, relata.

“Em 2022, fui na despedida do Calaf, sem acreditar que aquele lugar tão especial iria fechar. Agora, parece que chegou a hora de verdade. É triste imaginar que não vou mais entrar naquela roda de alegria e não vou poder dar tchau pessoalmente. Mas, guardo com muito carinho as lembranças, histórias e a sensação de 'liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós'", cita em referência ao samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense de 1989.

Tradição há quase duas décadas, o 7naRoda já fazia história no boteco nos anos 2000. “O Calaf fez parte da minha vida por mais de 15 anos”, afirma Juliana Vasconcellos, 49. O espaço era garantia nos planos semanais da advogada por mais de 10 anos — ela era figura cativa nas tradicionais terças com 7naRoda, nas apresentações do Coisa Nossa às sextas e nas rodas de samba de sábado, que começavam às 14h e viravam madrugadas.

“Em 2007, eu fiz um mega aniversário lá, em 7 de julho.  Fui coroada rainha do Calaf pelos meus amigos, recebi um troféu no palco, sendo ovacionada pelo público, aos gritos de: ‘Ela merece, ela merece’”, ri. Lá, Juliana encontrou pessoas que marcaram sua vida para sempre. “Em 2008, eu conheci o pai do meu filho no samba da terça do 7narRoda e, em 2015, eu conheci o amor da minha vida, em uma terça de carnaval com a 7naRoda também. Estamos juntos até hoje”, lista.

“É um lugar importante para mim, onde eu tive muita alegria, muitas confraternizações com amigos, e vivi muito samba e muita dança. Era o lugar que eu mais gostava de ir durante essa época da minha vida”, recorda.

Trilha sonora que ficou marcada na história do boteco, o 7naRoda é responsável pelo samba final do espaço. “É uma grande honra fazer o encerramento do Calaf, por tudo que ele representa no cenário cultural de Brasília e pelo que o grupo vem construindo durante todos esses anos junto a essa casa tão representativa”, assegura o integrante Guto Martins. “A gente fecha com chave de ouro esse ciclo tão rico e tão diverso, que se confunde com a história do Distrito Federal”, celebra.

Para a despedida, Venceslau, Priscila, Paula e Luiza deixam um último convite. “O Calaf morre agora, mas vive um pouquinho em cada lembrança de um bom samba, de um bom beijo, de uma cachaça da casa com os amigos, de uma feijoada feita no capricho. Venham celebrar conosco nesta terça, uma última e derradeira vez. Quem viveu o Calaf sabe qual é o legado que deixamos”, chamam. Na noite de hoje, o 7naRoda representa o público brasiliense com o recado final: Valeu, Calaf!

Serviço

7naRoda apresenta A Melhor Terça do Mundo: Valeu, Calaf!

Hoje, a partir das 20h, no Calaf Brasília

Ingressos por meio da plataforma Sympla, a partir de R$ 25

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