Luto

O adeus ao poeta: morte de Clodo Ferreira comove Brasília

A morte de instrumentista, cantor e compositor Clodo Ferreira comove Brasília. Amigos e artistas relembram a elegância poética do autor de Revelação

Músico Clodo Ferreira. -  (crédito:  Ed Alves/CB/D.A Press)
Músico Clodo Ferreira. - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

A cidade amanheceu, ontem, sob o abalo da notícia dramática: Clodo Ferreira morreu aos 72 anos. O compositor, instrumentista, poeta e professor estava internado há dois meses no Hospital Brasília, fazendo tratamento de seis tipos de câncer. Mesmo doente, até os últimos instantes, ele era animado pelo desejo de compor. Mas estava debilitado pela luta contra a doença e não resistiu.

Clodo é um compositor de Brasília e do Brasil. Canções como Revelação, Cebola cortada, Corda de aço e Por um triz foram tocadas nos alto-falantes, das emissoras de rádio e nas telenovelas. E foram cantadas nas vozes de Fagner, Dominguinhos, Milton Nascimento, MPB4, Fafá de Belém, Zizi Possi, Engenheiros do Hawai, entre outros. 

O marco na carreira de Clodo e dos irmãos Clésio e Climério foi a canção Revelação (1979) que se tornou o primeiro grande sucesso nacional de Fagner. O cantor cearense vivia no roteiro boêmio dos bares de Fortaleza e, em 1971, os pais resolveram mandá-lo para Brasília na esperança de que "tomasse juízo". Fagner participou do Festival de Música Jovem do Ceub, ganhou cinco prêmios e se mudou para o Rio de Janeiro, onde decolou a carreira nacionalmente.

Na segunda edição do Festival do Ceub, ele voltou na condição de presidente do júri e trouxe os amigos Ivan Lins e Lucinha Lins como jurados. Eles ficaram impressionados com a canção Placa luminosa, parceria de Clodo Ferreira e Zeca Bahia, defendida pela banda de rock Matuskelos: "Teu corpo tão barato me custou tão caro/Teu corpo tem a forma colorida e fria da placa luminosa".       

Placa luminosa ganhou o primeiro prêmio e, além da visibilidade, o maior prêmio foi selar a amizade a parceria com Fagner. Logo no segundo disco, Fagner gravou Revelação, parceria de Clodo e Clésio, que se tornaria o primeiro grande sucesso nacional do cantor tocado nas rádios AM. Fagner assistia ao show de lançamento do álbum São Piauí, no Teatro Galpão, e, quando ouviu Revelação, disse de maneira profética para Clodo: "Essa você guarda para mim, vocês vão ficar velhos e essa música fará sucesso".  A canção estourou em todo o país.    

Ao Correio, Fagner ressalta que a relação com Clodo era mais do que pessoal; se estendia para uma relação com Brasília: "Ele era uma referência, quando eu pensava em Brasília, pensava em encontrar o Clodo. É uma história muito bonita de parceria e amizade. Ele foi muito importante na minha carreira. Devo a ele, com Revelação, o meu primeiro grande sucesso popular. E outras tantas parcerias que nós fizemos. Clodo era um craque, tinha harmonias muito precisas, conseguia fazer a coisa muito sofisticada ficar muito simples. Um abraço na Helô, no Climério, e em toda a família. "

Clodo chegou a Brasília com 13 anos. Pegou o avião em Teresina no fim da tarde,  aterrissou no início da noite e ficou extasiado com a visão do Plano Piloto. "A diferença era notável entre a luz humilde de Teresina e o colar de luzes impressionantes de Brasília", lembrou Clodo, em uma entrevista ao Correio. Ele foi morar em Taguatinga. 

Guitarrista

Quando tinha 15 anos, estreou como guitarrista na banda Os Geniais, em 1965.  Estudou no Cemab, em Taguatinga Sul, onde se tornou amigo de Riba Nascimento, com quem estabeleceu várias parcerias musicais.  Tocou guitarra base, em 1967 e 1968, no conjunto Os Quadradões, fundado por Riba. Mas teve de sair do grupo, pois tinha 16 anos e não podia tocar à noite com essa idade.  

Naquela época, Taguatinga tinha uma atividade musical frenética, impulsionada, principalmente, pelos conjuntos de baile, que arrebatavam a juventude embalada pelos Beatles, Rolling Stones e a Jovem Guarda: "Eu e o Riba brincávamos que Taguatinga era quase Liverpool, tinha muitas bandinhas de jovens", contou Clodo, ao Correio. "A gente saía sem rumo para rua e entrava de penetra nas festas."

Climério e Clésio já faziam música no Piauí; Clodo tocava violão, mas só passou a compor em Brasília. "Clodo foi um artista que aconteceu para essa cidade que o acolheu tão jovem", destaca o cineasta e amigo Vladimir Carvalho, de quem foi colega nos tempos de professor da Universidade de Brasília (UnB). "Foi aqui que Clodo se transformou em uma força da música brasileira. O legado da música dele é uma fortuna incalculável".

Clodo gravou com os irmãos Clésio e Climério, seis álbuns: São Piauí, Chapada do Corisco, Ferreira, A profissão do sonho, Clodo, Climério e  Clésio, e Afinidades. E, de maneira solo, cinco álbuns: Constelação de palavras,  Calendário, Clodo Ferreira interpreta Sinhô, Gravura e Corda de aço.

A fama nunca interferiu na atitude discreta e generosa de Clodo, sempre interagindo e promovendo os músicos da cidade, como ressalta o flautista Sidney Maia: "Ele era muito importante para a divulgação do polo de produção musical da cidade. Contribuiu muito para o estudo da música sendo pesquisador da música brasileira", diz Sidney. "Já para os amigos, o legado é a pessoa, o caráter, a alegria, a forma de encarar a vida. O Clodo tinha um prazer enorme de viver". 

Clodo era um dos melhores amigos do violonista Jaime Ernest Dias, com quem conviveu por 20 anos e acompanhou em vários shows: "Além de um inspirado letrista, ele era um grande compositor e me presenteou com uma suíte para violão solo e cheguei a tocar para ele ouvir, junto com o filho Pedro".

O procurador e compositor Antônio Carlos Bigonha era amigo de Clodo e se tornou parceiro ao compor Perto do Tom, que, gravada em 2020 no seu álbum Saudade do amanhã, obteve 1 milhão de visualizações no streaming. "Antes do lançamento do disco fiz um show no Feitiço Mineiro, em 2019, e ele participou cantando a música, o que me deu muita alegria. Brasília e o Brasil acaba de perder um artista de grande talento".

Serenidade

A criação era incessante em Clodo. Ele estava empenhado em vários projetos e ficava animado em compor até os últimos momentos. Lançou, neste ano, nas plataformas sociais, dois álbuns: Constelação de palavras e Calendário. Na verdade, o primeiro foi gestado em 2001, mas Clodo avaliou que as letras eram muito densas e poderiam provocar rejeição. Ele estava equivocado.

As letras transmitem realismo, coragem serena, romantismo sutil  e sabedoria na arte de viver. Ele tematiza os limites, as incertezas e a imprevisibilidade da vida. "Hoje, eu vejo que a vida tem uma carga de incerteza que a gente tem de aceitar", afirmou Clodo ao Correio. "Aceitar que a vida é incerta, já é um passo à frente."  

Clodo que cantou tanto a paixão, falava de uma outra maneira sobre as relações afetivas e o amor: "Falo de um amor que não depende da paixão somente, pode ser um amor pessoal e um amor geral, que te torna uma pessoa amorosa."   

Além disso, lançou o álbum Calendário, que reuniu 14 composições para sopro, depois de vencer a timidez, pois exercitava essa vertente musical há mais de 30 anos. "De repente, mostrei para algumas pessoas, e elas acharam que estava muito bom.  Eu tinha esse pudor. Agora, me entusiasmei vou deslanchar outros projetos. Tenho peças para quarteto de cordas, piano e flauta. Tenho composições só para piano."

Clodo deixa os filhos Pedro e João Ferreira e a esposa Eloisa Costa. A irmã Cristina Ferreira, 68, o descreve como a pessoa mais delicada e carinhosa que conheceu. "Ele tinha uma relação de cuidado e presença com os irmãos e com a família, fazia questão de estarmos juntos. Clodo acumulou bons amigos ao longo da vida, além disso, era um pai maravilhoso e dedicado, um marido querido", descreve emocionada.

*Colaboraram Nahima Maciel, Irlam Rocha Lima, Pedro Ibarra, Ana Neves e Mariana Saraiva

  •  Credito: Gabriel Guimaraes/Divulgacao. Cantor e compositor Clodo Ferreira.
    Credito: Gabriel Guimaraes/Divulgacao. Cantor e compositor Clodo Ferreira. Foto: Gabriel Guimarães/Divulgação
  • Fagner com os amigos e parceiros Clodo 
e Clésio
    Fagner com os amigos e parceiros Clodo e Clésio Foto: Carlos Veras/Divulgação
  • Clodo Ferreira
    Clodo Ferreira Foto: Arquivo pessoal
  • Clodo Ferreira
    Clodo Ferreira Foto: kleber sales
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 17/07/2024 06:00
x