A referência de um lar seguro, a dureza do trabalho infantil, a conexão com os animais e com a natureza, como lidar com o luto, o envelhecimento, a perda da memória e a importância da ancestralidade. Falar com as crianças sobre temas como esses é sempre difícil, o que faz de uma pequena leva de publicações no universo da literatura infantil um pacote bem-vindo e rico.
Assinados por nomes como Itamar Viera Jr., Stênio Gardel e Ailton Krenak, que estreiam na seara de livros para crianças, além de Neil Gaiman e Tama Ellis Smith, os livros convidam os pequenos leitores a passear por histórias que não começam necessariamente felizes nem terminam com fogos de artifício, mas que trazem na delicadeza e na poesia uma sugestão de como transitar por sentimentos e emoções.
Menino do campo
Ganhador do Prêmio Jabuti e autor do bestseller Torto arado, o baiano Itamar Vieira Jr. há muito alimentava a vontade de fazer um livro infantil. “Passei muito tempo procurando a linguagem adequada, mas já sabia a história que queria contar”, avisa. Chupim é uma história que atravessa o universo de Torto arado e retoma uma passagem do romance na qual crianças brincam de espantar o passarinho chupim da lavoura.
No livro infantil, a narrativa toma a perspectiva de uma criança, como ela entende aquele espaço da roça e como reflete sobre a relação do homem com a natureza. Julim, o personagem, faz parte de uma família numerosa de trabalhadores do campo que migram de território em território conforme a oferta de trabalho.
“É uma família como muitas que vi no campo e esse personagem, no fundo, não é muito diferente do passarinho. Ele é uma criança e está sendo introduzido nesse mundo do trabalho, como inúmeras crianças no Brasil”, lamenta o autor. Em entrevista, ele conta como idealizou o livro e por que escolheu a figura do chupim, passarinho muito comum nas lavouras de arroz.
Luto e refúgio
O inverno estava próximo e o inglês Neil Gaiman pensou nas pessoas que haviam perdido suas casas em consequência de guerras ou desastres naturais. Era 2019 e ele foi às redes sociais perguntar aos seguidores quais eram suas melhores memórias quando se tratava de inverno e manter-se aquecido.
Gaiman é embaixador da boa vontade da UNHCR/ACNUR, a Agência da ONU para refugiados, e a intenção era criar uma ação que pudesse ter algum reflexo para os desabrigados. O resultado foi um belo poema construído com as memórias dos internautas e transformado em um livro infantil cujo valor da venda será revertido para a organização.
Do que você precisa para se aquecer é uma maneira de levar aos pequenos leitores a lembrança de uma tragédia vivida por uma parte da humanidade que pouco acesso tem à noção de conforto e segurança. Luvas quentinhas, uma batata assada, a umidade na janela, o aconchego de uma cama em contraposição a um deserto pedregoso, à mudança de estado, de cidade, de país, ao medo do agito das águas em um barco precário povoam as histórias narradas em forma de prosa. Mas sem uma estrutura narrativa convencional.
Conhecido como o criador das HQs de Sandman, Gaiman é também um experiente autor de livros infantis, com mais de 13 títulos publicados, inclusive o famoso Coraline. “As guerras que haviam levado as pessoas à condição de refugiadas não acabaram, mas novas guerras começaram, e mais delas deixaram o lugar onde moraram a vida toda”, lamenta Gaiman, no prefácio do livro. Lidar com a morte e com a perda de entes queridos é o tema de O luto é um elefante, que traz analogias delicadas para entender a dimensão de um sentimento devastador.
A linguagem de Tamara foi pensada para crianças, mas é também um bálsamo para os adultos. Se, na forma de um elefante, o luto trava a respiração e paralisa, ele também pode se transformar numa ratinha que escuta e faz o sentimento de perda diminuir ao longo do tempo. Vale ficar atento para as ilustrações, que investem em momentos ora bem figurativos, ora quase abstratos, uma metáfora para esse vaivém de emoções que a perda de entes queridos é capaz de provocar.
Ancestralidade
Kuján é apenas um tamanduá apetitoso para a maior parte da aldeia, mas os meninos Roti e Cati souberam imediatamente estar diante do próprio criador do universo. Enquanto todos veem apenas um animal, os meninos aproveitam para ouvir ensinamentos ancestrais e salvam o bicho de ser assado na fogueira.
As crianças aprendem que o mundo é um jardim no qual podem fazer de tudo e, por acreditarem na magia que envolve todas as coisas vivas, elas podem enfim se sentar e conversar com o criador.
Kuján e os meninos sabidos é a estreia de Ailton Krenak na literatura infantil e nasceu de uma parceria com Rita Carelli, ilustradora e organizadora dos livros do autor.
A história retoma um mito krenak da criação do mundo e traz reflexões sobre a noção de pertencimento, a importância da transmissão das histórias e uma ideia muito presente nos livros de Krenak, o questionamento da relação dos humanos com a natureza.
“Acho muito interessante essa narrativa porque se alinha com o conteúdo que o Ailton traz desde o primeiro livro, que é questionar essa supremacia da humanidade, essa prepotência de achar que somos o banbanbans do universo. Será que a humanidade é tão incrível com tanta besteira que tem feito no planeta?”, diz Rita.
Ao final, as crianças perguntam ao criador o que acha de suas criaturas e ele é implacável: “mais ou menos”, responde. Ancestralidade também é o tema de Bento, vento, tempo, de Stênio Gardel, com ilustrações de Nelson Cruz.
Vô Cacá está perdendo a memória, mas, por meio do neto, tem o passado resgatado e registrado em um texto muito poético em forma de cordel. O autor conta que se inspirou nas lembranças do próprio avô para escrever o livro.
“Nas cenas dessa história e nos versos e rimas desse cordel quero avivar a saudade e cantar sua permanência”, escreve Gardel, ao contar que avô, trabalhador da roça, o levava para todo canto na garupa da mobilete amarela, no interior do Ceará.
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