Literatura

Literatura 'healing fiction' dá protagonismo aos conflitos internos

Fenômeno editorial importado, principalmente, da Ásia, ganha mais espaço entre os leitores brasileiros

Os clientes de um estúdio de fotografia descobrem que estão entre a vida e a morte enquanto percorrem imagens de suas próprias memórias. Um carteiro com uma doença terminal conversa sobre o sentido da vida com um demônio que é uma versão dele mesmo. Na lavanderia de Jieun, pessoas bebem chá enquanto compartilham lembranças dolorosas. Mari, a jovem recepcionista de um hotel familiar, se apaixona por um hóspede misterioso e dá início a uma trama pontuada por relacionamentos polêmicos. 

É relativamente fácil definir as sinopses dos livros orientais de healing fiction, gênero que tem ocupado cada vez mais espaço nos catálogos das editoras brasileiras e que traz para os leitores histórias simples, mas carregadas de reflexão sobre o sentido da vida. Entre os títulos recentemente lançados estão A lanterna das memórias perdidas, de Sanaka Hiiragi, Se os gatos desaparecessem do mundo, de Genki Kawamura, Hotel Íris, de Yoko Ogawa, todos japoneses, e A incrível lavanderia dos corações, da coreana Yun Jungeun. "Na verdade, a healing fiction sempre existiu. O que mudou é que, com o aumento da publicação de livros com essa temática, acabamos incorporando essa nomenclatura das feiras. A healing fiction é um gênero literário que, apesar de ser ficção, conta com mensagens, reflexões e dicas para quem busca uma vida melhor", explica Talitha Perisse, editora de aquisição da Intrínseca. 

O nome do gênero foi adotado para facilitar os negócios nas feiras, mas os livros têm algo em comum: são histórias que, normalmente, se passam em algum tipo de estabelecimento, seja ele uma loja, cafeteria ou restaurante, e têm como característica principal serem leituras leves, sem restrição de idade ou gênero. A maioria vem da Ásia porque, segundo Talitha, os mercados sul-coreanos e japoneses são bastante receptivos a leituras mais introspectivas e reflexivas, o que tem tudo a ver com a ficção de cura (healing fiction).

A coreana Yun Jungeun, autora de A incrível lavanderia dos corações, faz uma comparação com a própria história da Coreia para justificar o sucesso de leitura e de produção do gênero no país. Ela acredita que, por terem enfrentado condições de vida difíceis, com guerra e miséria, as pessoas mais velhas aprenderam a lidar melhor com as emoções, uma habilidade que falta às gerações mais novas. "A Coreia de hoje, embora pareça sofisticada e cheia de glamour por fora, está em processo de aprender a lidar com as doenças mentais. Acredito que a popularidade da ficção de cura está crescendo por estarmos aprendendo a conviver com emoções como depressão, transtornos do pânico, ansiedade e compulsões em meio a um clima social altamente competitivo", diz Yun Jungeun.

Em A lanterna das memórias perdidas, a morte é o principal tema de Sanaka Hiiragi. Professora universitária de língua japonesa e autora de uma série de best-sellers no Japão, Hiiragi não gosta de rotular os livros com o selo da healing fiction, mas admite que gosta de escrever histórias existenciais e de cura. "Quero escrever sobre o drama humano que acontece na jornada sem volta. Acho que o ponto principal do gênero de healing fiction é a construção de um parâmetro de realidade ao lidar com a morte", explica. A popularidade do gênero, ela atribui a uma particularidade social. "Acho que, no Japão, há um sentimento de estagnação na sociedade como um todo no momento e, por isso, as pessoas estão buscando consolo, pelo menos na ficção", acredita.

A morte é um dos temas da healing fiction, mas não o único. Arrependimento, culpa, nostalgia, desilusões amorosas e seus efeitos psicológicos, doenças que representam risco de morte e seus efeitos no doente e nos que o cercam, conflitos familiares, qualquer drama humano pode servir de ponto de partida. "O que todos têm em comum é o amadurecimento emocional dos personagens através das reflexões e das atitudes que surgem a partir do enfrentamento do sofrimento, seja físico, seja psicológico", avisa Renata Pettengill, editora-executiva da Bertrand Brasil, que publicou As lanternas das memórias perdidas e Se os gatos desaparecessem do mundo. 

A editora Talitha Perisse lembra ainda que o maior diferencial da ficção de cura está na forma como os livros criam um espaço seguro e extremamente reconfortante para o leitor. São cenários conhecidos e acolhedores, com personagens empáticos e que fazem verdadeira companhia. "A sensação que fica é a de leveza", explica. Como o tema é a cura, os personagens não enfrentam grandes dilemas e não existe um ápice na trama. "São as dificuldades do dia a dia que ganham protagonismo e como cada uma dessas pessoas busca soluções para ficarem em paz", aponta Talitha. 

Os conflitos internos dos personagens e a maneira como enfrentam as situações fazem com que os leitores se identifiquem facilmente num processo semelhante ao da autoajuda, mas pelo caminho da ficção. Para a editora, a pandemia pode ter aumentado a procura por esse tipo de ficção, que existe há muito tempo no mercado editorial do Oriente. "Nós viemos de um momento muito pesado de isolamento e grandes perdas. É natural que histórias mais leves e reconfortantes se tornem uma necessidade, ajudando a aliviar o estresse e se transformando em uma válvula de escape para os leitores", diz.

Entrevista/ Sanaka Hiiragi

Divulgação - Escritora japonesa sanaka hiiraki

Qual a maneira mais apropriada para falar da morte na literatura, na sua opinião?

A morte é a única coisa da qual ninguém pode escapar. No Japão, histórias que tratam da morte de forma dramática, como amantes separados pela morte por doença de um dos pares, tornaram-se muito populares, principalmente entre os jovens. É claro que há mérito em tais histórias, mas eu queria tratar a morte de forma mais amena. Tento escrever a luz da vida mesmo lidando com a morte, através da descrição de sombras realçando a forma dela.

Por que escolheu as memórias como tema do livro?

Muitas vezes, quando eu caminhava com meu filho ainda bebê nos braços, mulheres idosas se aproximavam de mim para conversar. Elas sorriam e olhavam para o rosto do meu filho, mas, ao mesmo tempo, pareciam também estar se lembrando de seus próprios filhos. Acredito que as memórias são o que realmente molda uma pessoa.

A fotografia está presente em alguns dos seus livros. Qual sua relação com essa técnica?

Acredito que a fotografia permite que você capture um pedaço do passado e o mantenha consigo. Acredito que as pessoas vivem suas vidas deixando de lado suas memórias, mas quando você tem uma fotografia como pista, de repente pode desencadear lembranças de eventos daquela época. Acho que é como um poema curto. Escrevo com a esperança de que, como em uma fotografia, eu possa transmitir ao leitor alguma imagem.

Entrevista/ Yun Jungeun

YOUN IL HO - Escritora coreana Yun Jungeun, autora de A incrível lavanderia dos corações

Como surgiu a ideia para A incrível lavanderia de corações?

Durante muito tempo me perguntei como seria a vida sem dores ou manchas no coração. Até que um dia me dei conta de que todas essas manchas são como manchas do tapete da minha vida, e foi aí que escrevi a primeira frase. Penso que escrever vários ensaios em que observei e registrei objetivamente minha vida diária e emoções a partir de uma perspectiva em terceira pessoa me ajudou muito no início deste romance. Eu queria ler uma história em que as pessoas olhassem para as manchas em seus próprios corações e nos corações dos outros, e vivessem juntas de maneira calorosa e gentil. Então, acabei escrevendo a história que queria ler.

Para você, o que é felicidade?

Acredito que a maior felicidade reside na repetição de uma rotina diária sem grandes problemas. Na verdade, manter uma vida cotidiana pacífica é tirar a sorte grande. Acho que grandes eventos são como fogos de artifício, proporcionam um momento de alegria, mas não a essência da felicidade. A verdadeira felicidade é encontrada na repetição contínua da vida diária, no início de cada nova manhã após uma noite de sono tranquila, com um senso de gratidão e admiração.

Qual a importância da memória na construção de quem somos?

Os humanos vivem hoje e se preparam para o amanhã levando em conta todas as suas memórias. As memórias são a história e a narrativa de uma pessoa. Sejam as memórias boas ou ruins, acho que o rumo da vida de uma pessoa pode mudar dependendo da atitude e da mentalidade com que são aceitas. Às vezes, certas tristezas podem se tornar uma fonte de força para viver. Houve um tempo em que eu queria apagar todas as minhas lembranças ruins. Foi quando percebi, enquanto pensava na escrita deste romance, que se eu apagasse as lembranças ruins, as boas também desapareceriam (pelo menos na minha vida). Então, decidi não odiar muito as lembranças ruins, mas sim me reconciliar com elas e viver bem. Como as memórias nos moldam, o importante é não sermos engolidos por elas. Se são boas lembranças, devemos apreciá-las e extrair força delas. Se forem lembranças ruins, devemos evitar ficar muito submersos nelas.

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