Literatura

Enredos brasileiros e fora do eixo: destaques femininos na literatura

Romances de três autoras da periferia contam histórias de um Brasil fora do centro e marcado por personagens peculiares

Uma cidade brasileira na qual a população negra desaparece aos poucos e a ideia de eugenismo se espalha sem amarras. Duas irmãs são as faces opostas dos desejos de uma mãe. E uma garota recorda histórias de casas baseada na memória afetiva de um casarão no Recife dos anos 1940. Três livros que se assumem como ficção, mas não deixam de dar algumas pernadas na realidade, todos assinados por autoras brasileiras, entrelaçam histórias brasileiras e reforçam a presença cada vez maior de mulheres na literatura nacional. Nara Vidal, Tércia Montenegro e Claudia Cavalcanti são também escritoras distantes do centro, periféricas quando se trata de região. Nascida na cidade mineira de Guarani, Nara Vidal mora em Londres. Em 2018, publicou Sorte, terceiro lugar no prêmio Oceanos, e em 2022, foi a vez de Eva, finalista do São Paulo de Literatura. Claudia Cavalcanti nasceu e mora no Recife e é um dos nomes à frente das publicações da Casa Vera Cruz e Tércia Montenegro é de Fortaleza, onde dá aulas na Universidade Federal do Ceará.

Eugenia brasileira

Nara Vidal ficou perplexa quando se deparou com o artigo 138 da Constituição brasileira de 1934: a alínea b propõe estimular a educação eugênica. Partiu dessa descoberta a vontade de escrever o romance Puro, narrativa que combina uma atmosfera de terror com uma postura crítica em relação a um período da história brasileira. No livro, Santa Graça é uma cidade dominada pelo pensamento eugênico na qual não cabem Íris, a empregada negra; e Ícaro, o menino com deficiência do qual ela cuida. Pensamentos de limpeza social são perpetuados pela igreja e encampados pela população. 

"Fiquei muito intrigada com a normalização desse tipo de estímulo. É muito chocante pensar nisso e, ao mesmo tempo, fazer uma relação com nossos dias, com toda essa tendência política que vem acontecendo há alguns anos", diz Nara. "No Brasil, a gente pode pontuar com Bolsonaro; na Inglaterra, onde moro, com o Brexit, com esse patriotismo de curso mais populista. Isso levanta essa questão da normalização do racismo, essa ideia de supremacia branca e isso é um ponto muito importante para a narrativa do livro."

O espanto inicial tomou a forma de construção literária: em menos de 100 páginas, Puro vai da dúvida ao assombro. Aparentemente, não há muita graça em Santa Graça, que vive um cotidiano de aparências, muita religião e certa irrelevância numa década de 1930 marcada pelo desenvolvimentismo. Com a concisão que exercita com habilidade nos contos, Nara Vidal faz um texto enxuto, com poucos diálogos e muitos monólogos, especialmente quando se trata dos personagens Íris e Ícaro. 

O menino não fala e não anda, mas observa, e seus pensamentos se transformam em escrita. Lázaro é o garoto da casa da frente, alvo da observação de Ícaro. Lázaro é branco e modelo de perfeição para os eugênicos de Santa Graça. Adotado, o garoto é criado por três mulheres misteriosas e sombrias que passam os dias a cozinhar não se sabe ao certo o quê. Quando os negros da cidade — especialmente as crianças — começam a desaparecer, Santa Graça se torna, aos poucos, um lugar macabro e aterrorizante. "Essa ideia de eugenia no Brasil foi construída e fundamentada por uma ideia de pseudociência. A ciência tem esse poder, quando diz que é científico, é quase um fato. Esse é o grande perigo", diz Nara. "Além de se dizer ciência, tem aquele discurso muito fascista de Deus, pátria, família. No Puro, um personagem diz que Deus fez as pessoas de cor para que cada um saiba o seu lugar. Se você tem um projeto pautado nesses pilares, é muito fácil para a população que não quer deixar de ter certos privilégios pegar isso como uma verdade única", explica a autora, num tom de indignação ao lembrar que esse capítulo eugenista da história brasileira sequer é ensinado nas aulas de história dos ensinos médio e fundamental. "Não é falado em todas as escolas, é como se a gente falasse da década de 1930 e não tocasse nesse tema, é como se fosse um pé de página", lamenta. Ela acredita que o tema precisa ser discutido na formação do cidadão brasileiro. "A partir desse conhecimento, a gente consegue entender os discursos que ouvimos ainda hoje, é uma narrativa muito comum em torno dessas ideias de Deus, pátria, família e supremacia", diz.

Trama familiar

O terceiro romance da cearense Tércia Montenegro traz a história de duas irmãs de personalidades opostas e de um segredo familiar. Um prego no espelho partiu de uma história pessoal, mas tomou  a dimensão de saga familiar a partir de uma premissa imaginada pela autora: uma pessoa pode, inconscientemente, repetir o padrão de seus ancestrais, o padrão de vida? Um prego no espelho traz a história de Thalia e Salete, filhas de Diana, que as transforma em duas versões bem diferentes do que ela mesma deseja. Thalia é atriz, despachada, forte. Salete é frágil, recatada, quieta. "São irmãs muito diferentes, à primeira vista. A mãe, Diana, costuma dizer que uma é a rocha  e a outra, o cristal. Uma é a força, aquela mulher que enfrenta o desafio, e a outra é delicada. É como se fosse uma predeterminação: elas agem para confirmar e, em certo sentido, é uma repetição de padrão", explica a autora. "A mãe coloca esse desejo de ter uma filha princesa e uma que é uma fortaleza e as duas vão agir para obedecer a essa sina. Embora no íntimo, nenhuma das duas queiram ser isso."

Casa da memória

Avenida Beberibe tem uma estrutura particular. Não é uma narrativa guiada pelas histórias dos personagens, pela ação, por uma sequência de fatos ou por conflitos existenciais. Claudia Cavalcanti o classifica como romance "porque é preciso classificar na ficha catalográfica". "Eu primeiro escrevi, depois procurei entender o que escrevi", diz a autora pernambucana. "É um gênero bastante indefinido, embora prefira que seja classificado como romance a não é ficção, até porque tem muita não ficção ali. Mas são memórias de uma menina em Recife nos anos 1960, 1970, e eu fui essa criança. Foi uma época muito dura e singular para quem foi criança em uma família de esquerda e de militantes comunistas."

A escrita foi desencadeada pela demolição da casa dos avós na qual a autora passou parte da infância. "Essa casa não existe mais, então é como se nem minha infância existisse, porque se resumia àquela casa. E é um sinal muito dos nossos trampos, porque Recife é uma cidade muito vítima de especulação imobiliária e a casa meio que representa essa especulação", conta. Claudia queria, de alguma forma, perenizar a memória de uma infância agitada. Da casa familiar, ela passou para outras casas, algumas conhecidas, outras não, muitas fruto de especulações apoiadas em fotografias

Há todo tipo de casa na experimentação narrativa de Claudia. A dos tubarões que assombram as praias de Recife, a dos timbus, marsupial típico da região que mora em árvores, a de Paul Celan, cujos versos a autora traduziu, a de Eça de Queiroz, de Thomas Mann, dos avós de um menino do Rio Grande do Sul. "O que eu queria era tecer todas esses diferentes gêneros, situações e épocas, porque estou falando de várias épocas, com um senso literário, com um estilo, uma coisa que não pesasse para o leitor e que fosse fluida", avisa a autora. 

Um prego no espelho

De Tércia Montenegro. Companhia das Letras, 150 páginas. R$ 89.90

Avenida Beberibe

De Claudia Cavalcanti. Fosforo, 88 páginas. R$ 64,90

Puro

De Nara Vidal. Todavia, 94 páginas. R$ 59,90

 

Mais Lidas

Todavia - Puro De Nara Vidal. Todavia, 94 páginas. R$ 59,90
Companhia das Letras - Um prego no espelho De Tércia Montenegro. Companhia das Letras, 148 páginas. R$ 76,95
Fosforo - Avenida Beberibe De Claudia Cavalcanti. Fosforo, 88 páginas. R$ 64,90
IGOR DE MELO - Escritora Tércia Montenegro, autora de Um prego no espelho
Fotos: Renato Parada; Igor de Melo e Todavia - Claudia Cavalcanti
Todavia - escritora nara vidal
Todavia - escritora nara vidal