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Entrevista

Cineasta Denys Arcand fala ao Correio sobre novo filme

Arcand, célebre por filmes como As invasões bárbaras, Jesus de Montreal e O declínio do império americano, sabe colocar a boca no trombone

O alter-ego do cineasta, em Testamento -  (crédito:   imovison)
O alter-ego do cineasta, em Testamento - (crédito: imovison)

Em mais de 60 anos dedicados ao cinema, o cineasta canadense Denys Arcand, vencedor de Oscar e de prêmios no Festival de Cannes, entre outros, chega ao lançamento do seu mais recente longa: Testamento. Claro que, como sempre, comparece (indiretamente) aos cinemas com um filme potencialmente crítico em relação a muitos tópicos políticos e sociais. Na berlinda, aspectos das chamadas primeiras nações (as indígenas) que atravessam o Canadá. "O império (americano) foi muito benevolente comigo. Os impérios, aliás, estão de bem comigo: me deram um Oscar (risos). Estou feliz com o império (norte-americano), mas ele está desmoronando. Obviamente, se Trump for eleito, este ano, neste outono, será uma grande catástrofe. Nessa conjuntura, há ainda a guerra na Ucrânia — isso faz com que o mundo não esteja indo tão bem...", observa o diretor de 83 anos, recém-completados, em entrevista exclusiva ao Correio.

Como Jean-Michel, um solteirão que observa e interage, com moderação, no microcosmo ao redor de uma casa de repouso, Arcand — célebre por filmes como As invasões bárbaras, Jesus de Montreal e O declínio do império americano — sabe colocar a boca no trombone. "Na minha juventude, estávamos nos anos 1960, e as pessoas protestavam com muita frequência em manifestações. De verdade, já fui preso pela polícia uma ou duas vezes; passei até uma noite no departamento de polícia. Protestava em torno da independência de Québec, da área que traz corrente a língua (oficial) francesa. Mas, bem no fundo, não fui muito militante", confessa. Confira o papo com o diretor que até arrisca coordenadas para o futuro do cinema.

Entrevista //
Denys Arcand, cineasta

Há algo de você, no protagonista de Testamento, não — tipo alter-ego?

Sim ele é, mas sob alguns pontos de vista. Basicamente, tem minha idade. Eu estudei história e ele foi historiador e trabalhou em arquivos. É bem próximo. Há partes muito distintas: sou cineasta e não moro sozinho em uma casa de repouso, como ele mora; estou cercado de pessoas, no cotidiano. Basicamente, ele é muito parecido comigo. No que ele diz e na maneira como se comporta, ele traz semelhanças.

Vemos muitos aspectos críticos à sociedade. Pergunto: a ignorância é uma dádiva?

(Risos) Acho que, às vezes, provavelmente, sim, bem provavelmente. Sim, mas não é uma dádiva. Não acho que a ignorância seja uma qualidade. Você deve ser o mais preparado possível. Estar atento ao que está acontecendo ao redor de você; nunca se esforçar para ser desavisado. Devemos buscar ser o mais ilustrado possível. Esse personagem central não creio que ele tenha opiniões muito estabelecidas sobre qualquer coisa, não vejo ele como desatualizado ou ultrapassado. Apenas é testemunha do que está ao seu redor. Ele tenta ser o mais inteligente possível, o mais bacana. Ele é, sim, idoso; ele tem diferença de idade em relação aos personagens que integram os protestos registrados. Ele é um velho tentando entender o que está acontecendo.

A questão da reparação indígena pesa na trama. Como se curariam feridas?

Todo país americano tem que enfrentar isso. Tenho certeza de que a situação é a mesma no Brasil e em muitos outros países. Os indígenas no Canadá foram muito discriminados. Houve crimes contra eles. Assassinatos. A história é horrível. Segue a cartilha do enredo colonialista. Isso, por todas as Américas, de Norte a Sul. A situação é horrível. O que podemos fazer para ajudar, para promover melhorias? Essa situação é muito complicada. Se sofre um processo de aculturação. Pessoas estavam em uma idade da pedra e, de repente, você os puxa para o século 21; então, como você faz isso? E é muito, muito difícil. Temos de ouvi-los, o quanto possível. Mas ouvi-los, não, necessariamente, aos manifestantes plantados na esquina da rua. Não dar ouvidos aos que dizem que os representam... Ouvir os indígenas — e este é o dilema no meu filme. Não se ater aos agitadores de esquerda que dizem pertencer à causa dos indígenas. Temos que escutar os verdadeiros indígenas, aqueles que devem ser consultados.

Confira vídeo com a entrevista 

Um homem branco pode se sentir excluído como no filme?

Respondo como um "velho branco" — e isso é fundamental e é diferente de ser jovem branco. Se estou lidando, por exemplo, com os problemas dos indígenas, vou falar com eles, não me sinto rejeitado e nunca me sentiria. Tentamos buscar entendimento. É uma interação construtiva. Se falo com a geração mais jovem de brancos; sou, sim, acusado de ser um homem branco, e um homem branco velho. E tem esta teoria feminista: o homem branco é absolutamente culpado de tudo o que aconteceu à humanidade através dos tempos. Portanto, o patriarca é o culpado absoluto por absolutamente tudo. Posso tentar me modificar, mas sou branco e idoso. Vez por outra, gosto de ironizar e me divertir um pouco com essa situação. Hoje em dia, se eu for a um festival de cinema, só há diretoras mulheres e o júri é composto de mulheres (risos). E as mulheres dão prêmios umas às outras. Posso receber prêmio de consolação e, sim, será um tributo relacionado à idade. No filme, há uma cena de acúmulo de erros relacionados à premiação (literária). Eu me divirto um pouco porque, às vezes, acho que as mulheres são muito sérias. São, de forma mortificante, sérias, em tempo integral. Se você esboçar algum comentário bobo, então! Por um fio, elas não te estrangulam. Nisso, sou somente eu, sendo eu (risos).

Entre choradeira por cause de spoiler a novos conceitos entre o jovem público, em que muda a dita sétima arte?

Toda a situação do cinema está mudando agora. Digo, fui ver outro dia Duna 2. Sou amigo de Denis Villeneuve, o diretor. É o maior filme que eu já vi, é gigantesco. Há explosões e computação gráfica e efeitos sobrepostos e custou 300 milhões de dólares, então é isso: um orçamento impensável. Estão dizendo que é o novo caminho para o futuro. Quero dizer, vamos ver esses filmes extremamente grandes, em salas gigantes como IMAX e eles serão retumbantes. Esses serão exibidos nos cinemas. Na outra ponta do espectro, podemos pensar em filmes muito menores, como os meus, que serão basicamente colocados na internet. Você vai vê-los em casa, não, necessariamente, no seu computador. Você pode ter uma boa tela. Em casa, por exemplo, tenho uma tela muito boa, com 2 metros de largura e 1 metro de altura. Então a qualidade é muito boa. Posso desfrutar dos filmes perfeitamente. O som é bom, perfeito. Nisso estarão os filmes menores, pequenos e mais íntimos. Encontrarão um nicho, em algum lugar, neste vasto universo da internet. Então é isso que veremos.

Você é emocional ou racional, como diretor, e Testamento pode ser último filme?

Um filme é algo muito complexo e, na direção, sou muito humano. Então você pode ter ideias, conceitos, racionalidade. Mas você também está lidando com uma atriz que tem emoções. Ela está no estado emocional X com o qual você precisa se preocupar. Há de se lidar com o bebê, em cena, e a atriz mais jovem; pessoas mais velhas — tudo é muito humano. Tem que ser totalmente emocional. Basicamente, equilibro emocional e racional. Se Testamento será meu último filme? A resposta é: não sei, agora. Não tenho nenhum projeto, mas ainda estou com boa saúde e se uma boa ideia ou algo válido e cativante surgir, quero fazer um filme e posso vir a fazer outro na carreira.

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postado em 27/06/2024 06:00 / atualizado em 27/06/2024 18:41
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