Obituário

Bem além de 'Jogos vorazes': conheça a rica carreira de Donald Sutherland

Pouco valorizado em premiações, o ator canadense, morto nesta quinta (20/6), atuou, por mais de 60 anos, no campo do audiovisual. Destaques vieram com Gente como a gente, Inverno de sangue em Veneza e Os doze condenados

Inverno de sangue em Veneza: clássico absoluto -  (crédito: DVD Versatil/ Divulgação)
Inverno de sangue em Veneza: clássico absoluto - (crédito: DVD Versatil/ Divulgação)

Uma prolongada doença — não especificada — foi apontada como a causa da morte de um dos mais versáteis atores de cinema: Donald Sutherland, morto em Miami, nesta quinta (20/6), aos 88 anos. Foi justo o filho dele, o ator Kiefer (popular como Jack Bauer, na série 24 horas) quem, ao anunciar a morte, enfatizou: "Meu pai amava o que fazia e fazia o que amava, e nunca se pode se desejar mais do que isso".

Grosso modo, desde o despontar no terror O castelo dos mortos-vivos (feito por Warren Kiefer, em 1964), o ator canadense que tentou ser engenheiro, foi locutor de rádio, na juventude, e, em 1956, entrou para a London Academy of Music and Dramatic Art, interpretou tipos em mais de 200 produções. Se a mãe, uma professora de matemática, enfatizou apenas a "beleza de seu caráter", o público mais jovem valorizou o sisudo ator de 1,92, por um papel: o do presidente Snow, da franquia Jogos vorazes, que na esfera do MTV Movie Awards, há uma década, o posicionou na competição de "melhor vilão" do cinema.

Um Oscar honorário, há seis anos, aplacou o pálido rendimento na seara das premiações, numa carreira praticamente encerrada, há dois anos, quando deu vida ao juiz Parker, da série Homens da lei: Bass Reeves. Guerra, espionagem, assassinato e terror foram terrenos corriqueiros na exploração do talento do astro celebrado por papeis como o do insano cirurgião e capitão “Hawkeye” Pierce, em meio à Guerra da Coreia, no cultuado M.A.S.H. (filme de Robert Altman, enigmático diretor que até ameaçou demiti-lo); o marido, na ficção, de Julie Christie, no inesquecível thriller Inverno de sangue em Veneza (polêmico, para 1973, dada a carga de erotismo e dor administrada pelo diretor Nicholas Roeg) e Casanova de Fellini, clássico de 1976.

Num universo particular do mito paquerador, a pedido de Fellini ("Ele é o mestre e, sim, você o servirá”, destacou o ator, dada vez) embarcou naquele que seria citado como seu papel preferido. "Eu não sou o tipo tradicional de Casanova", enfatizou, ressaltando a visão diferenciada do mestre italiano. Ceder às vontades dos cineastas gerou a exagerada constatação: "Eu era amante deles, e amado por eles". Na carreira, por nove vezes foi candidato a prêmios na cúpula do Globo de Ouro, e, em San Sebastián (Espanha), venceu troféu, pelo conjunto da obra. Um prêmio Emmy, pela interpretação de autoridade soviética, veio com Citizen X (filme da HBO de 1995). Relacionado à política, o papel de um fascista, em 1900, monumental obra de Bernardo Bertolucci, também fez história.

O papel de um cirurgião obscuro, integrado ao primeiro transplante de coração artificial, veio em No limiar da vida (capaz de render indicação ao Genie Award — maior honraria canadense). Também misteriosa foi a participação em J.F.K. — A pergunta que não quer calar (1991), quando adentou o filme de Oliver Stone, na pele de X, atrelado ao Pentágono, e peça-chave nas reviravoltas em torno do assassinato do presidente.

Com Orgulho & preconceito (2006), na pele do pai de Keira Knightley, cativou admiradores da literatura de Jane Austen. Com Brad Pitt, esteve em Ad Astra, e, em Condenação brutal (1989), contracenou com Sylvester Stallone. Outros momentos populares na tela vieram com o impacto de adaptação de Stephen King, O telefone do Sr. Harrigan (2022), com o controverso Assédio sexual (1994) e ainda, no papel título de Gaugain, um lobo atrás da porta (1986), feito ao lado do lendário Max von Sydow. Também importante foi a participação em O primeiro assalto de trem (1967), com a parceria de Sean Connery.

Otimista com qualquer papel, desde que avançou nos palcos no teatro da Escócia, em 1958, Donald absorveu redondo fracasso com montagem de Edward Albee, em 1981, em torno da obra-máxima de Nabokov, Lolita, que se limitou a 12 apresentações. Mundialmente, Donald foi projetado em Os doze condenados (1967), ao lado Charles Bronson e Lee Marvin. Num papel taciturno, ele, nos bastidores, se gabava de Robert Aldrich (o diretor) sequer saber o nome dele. Entre as divertidas afirmações, ao The Guardian, por exemplo, disse: "Sempre fui escalado como um maníaco homicida, mas, dentro de parâmetros artísticos". Dando vida a Robert Lees, numa trama de Sherlock Holmes, esteve no detetivesco Assassinato por decreto (1979), junto com James Mason e Christopher Plummer.

Com propriedades no Canadá e na França, o astro de cinema teve muito entrosamento com causas sociais e exerceu acirrado ativismo político. Para além do tipo liberal (o sargento Oddball), uma liderança hippie, esteve em Os guerreiros pilantras (com Clint Eastwood). Ainda sob a égide da guerra, atuou como um alemão apaixonado, em caso extraconjugal, pela personagem de Kate Nelligan, em O buraco da agulha (1981). Na vida real, junto com os colegas Peter Boyle, Howard Hesseman e Jane Fonda (com quem se envolveu, por três anos, e figurou em lista de vigilância do FBI), Sutherland fez shows itinerantes para dissidentes e militantes extraídos da Guerra do Vietnã. Jane Fonda, vale a lembrança, faturou um Oscar, contracenando justo com ele, em Klute, o passado condena (1971).

Lois Hardwick, Shirley Douglas (uma ativista política, associada a ações dos Panteras Negras) e a viúva Francine Racette, esposa dele desde 1990, encabeçaram relacionamentos com o ator Donald Sutherland. O intérprete (nascido em 17 de julho 1935), que deixou o posto inicial de vilão, se estabeleceu depois de oposição a muitas convenções que o tiravam do posto de galã. O astro, que era filho de um caixeiro-viajante, e brilhou, depois de integrar o elenco de filmes como O dia do gafanhoto (1975) e Os invasores de corpos (remake de 1978), particularmente em dramas oitentistas.

Ele, que viveu Cristo, na adaptação, contra o belicismo, da obra de Dalton Trumbo Johnny vai à guerra (1971), despontou em fitas emocionantes e com rendimento na esfera do Oscar, entre as quais Gente como a gente (1980), na qual fez um pai empenhado em manter a unidade de uma família em frangalhos; Assassinato sob custódia (1989), assinado pela francesa Euzhan Palci, e que teve o ponto alto de uma indicação para o Oscar de Marlon Brando e ainda, Seis graus de separação (1994), texto que tratava de escalonamento social do personagem de Will Smith.

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postado em 20/06/2024 19:34
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