Cinema

O retrato clipado da criminalidade, em Bandida: A número um

Saída da vida real, a escritora Raquel de Oliveira dá toda a base para a personagem do longa de João Wainer, interpretada por Maria Bomani

Cena do filme Bandida — a número um -  (crédito: Karyme França/ Divulgação)
Cena do filme Bandida — a número um - (crédito: Karyme França/ Divulgação)

Sob nenhum tipo de risco, na comunidade da Cascatinha (Várzea Grande, no Rio), e com filmagens ainda no Pavão-Pavãozinho, o longa Bandida — A número um, de João Wainer, foi rodado com as dificuldades de acessar, com pesados equipamentos, a favela e recriar fases dos anos de 1970 e 1980. "Quanto à integridade, valeu a questão: 'Não mexe comigo, e com ninguém, que está tudo certo'. O risco da equipe de cinema veio da experimentação. Apertar mais um parafuso das filmagens pedir interpretações tons acima", conta o diretor ao Correio.
Interpretada por Maria Bomani, como uma líder do tráfico carioca, depois de ser vendida a um bicheiro local, interpreta a personagem Rebeca. A autora e personagem da vida real Raquel de Oliveira, por meio de livro, deu base para um enredo tenso. "Durante o processo do filme, a gente não conviveu muito. O combinado foi que ela não precisava ficar aprovando coisas; nos aproximamos mais, no final do filme, e foi muito emocionante ver como ela ficou e se sentiu representada. Só isso já valeu. 'Coisas foram alteradas mas sentimentos que eu gostaria de passar, com meu livro, foram alcançadas', ela disse. Fiquei bem feliz", conta o diretor.

Entrevista // João Wainer, cineasta

Você acredita no incitar da violência, a partir de filmes violentos?

É aquela antiga discussão dos videogames: se incitasse, o mundo já teria acabado. O que tem de tiro, porrada e bomba. O filme, pelo contrário, é uma válvula de escape para pensamentos mais violentos. Claro que tem sempre uma pessoa perturbada, e que pode entender tudo errado. Mas, ela já tem isso consigo. Acredito que, por si só, não incite violência. As ações do filme não estão a serviço da violência. As ações do filme não estão voltadas a um clímax violento. Na narrativa, o amor acaba entrando como fator importante. A violência era muito presente na Rocinha naquela época, e só piorou. A violência, no filme, acontece, mas ela não está em primeiro plano.

Como formatou o filme?

Tem uma coisa do Bandida que é ele trazer uma tinta a mais. Tentamos fazer um filme que fala de favela, mas colocamos um filme que começa com uma mulher consumindo droga, ouvindo Fagner (Deslizes), e soltando uma granada de bomba vermelha, ao ser cercada de tiro em volta dela. De cara, o filme sai do ponto da realidade daqueles filmes mais secos, mais duros e mais áridos de favela. Buscamos uma espécie de subgênero. Tenho ouvido que ele não tem uma cara desses outros filmes de favela (Cidade de Deus e Tropa de Elite).

Bandida pode ser chamado de favela movie?

Trouxemos personalidade, por conta do uso da Betacam (uma câmera antiga, que minimizou o uso de material de arquivo). Criamos uma estética que colou uma ideia mais experimental e popular. Experimentações que tornaram o filme do cotidiano, sem investir na ideia cult. Buscamos algo mais comercial, mesmo porque ele tem uma coisa que o Tik Tok inspirou — o lance frenético. Há um registro meio sujo: as coisas acontecem de um jeito mais rápido tem muitas camadas e texturas sobrepostas. Trouxemos para conectar com o público mais jovem. Se é um favela movie? Não sei... Será que todo filme que se passa em Ipanema é um Ipanema movie, em Copacabana é um Copacabana movie?

Como foi a passagem pelo jornalismo?

Ainda bem novinho, aos 19 anos, como fotógrafo, fui conhecer o diretor Cacá Diegues, e eu falei, ainda sem filtro social, que queria trabalhar com cinema. Ele deu a dica: "Fica uns 10 anos no jornalismo e você vai entender e trazer experiências que vão ser úteis no teu cinema. Muito do que você vai saber sobre um set de cinema virá da experiência com o jornalismo e com ter história para contar". Nunca esquecer dessa dica; isso, de uma certa maneira aconteceu, sou um cineasta novo, acho que muito sempre refletirá um pouco do que eu vivi.

Ter atrizes como a influenciadora Michely Gabriely e Maria Bomani (ex-BBB 22) foi estratégico, junto com a questão de linguagem?

Sim. Além disso, há a proposta de uma espécie de misturador de Tik Tok com o meu primeiro documentário (Pixo, que tem essa estética suja). Busco uma estética de rua e do meu trabalho como fotógrafo. Meu trabalho, em cinema, fica clipado, rápido.

Que diferencial viu nas pesquisas para o filme?

Na pesquisa, conversando com as pessoas que moraram, com os historiadores, a gente entende que a Rocinha, nos anos 70 e 80, era uma favela majoritariamente branca e nordestina. Entendemos que o sotaque deveria ser, não o carioca, esperado de morro. Daí, trouxe o Otto para fazer um bandido, ele vem com toda a vivência dele de Pernambuco. Um dos moradores antigos na Rocinha que tava com a gente nas filmagens, disse: 'Assim eram os bandidos de antes, lourões, alemães, nordestinos'.

Que colaboração tiveram as roteiristas, num filme sobre uma mulher?

Fundamental ter as mulheres no roteiro deste filme. Houve a Patrícia Andrade, na origem, no primeiro tratamento do filme, depois, continuei o roteiro com o também montador do filme (Cesar Gananiana) e veio a Thais Nunes, jornalista que estava acostumada com crimes, cobrir e lidar com mulheres no crime. Foi muito importante: temos que ter escuta para cacete num filme destes.

Você dirigiu A jaula, reflexivo em torno do tratamento da violência... Qual tua percepção?

Venho jornalismo, trabalhei 20 anos na Folha, passei muitos anos ali na cobertura diária de hard news, viajando o mundo inteiro, fui fotografo muitos anos. Trabalhei no Notícias Populares, aquele jornal que você espremia e saia sangue. Sendo neto do Samuel Wainer (jornalista emblemático), senti, em épocas, muita pressão. Agora, está tudo bem e absolutamente natural. Lido com temas que prevalecem por causa do meu trabalho inicial com rap, movimentos de Os Racionais e ainda trabalhei no Carandiru.

Quanto aos titãs do noticiário do passado: Assis Chateaubriand e Samuel Wainer? O que sabe da relação deles?

Eu acho que o que eu conheço é o que está nos livros de ambos. Tanto em Chatô quanto na biografia do Samuel Wainer. São dois caras geniais cada um à sua maneira e que hoje já fazem parte da história do Brasil. As picuinhas da época já passaram. São muito f... no jornalismo. Não tenho muitos detalhes presentes sobre a relação deles.

 

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postado em 20/06/2024 10:33 / atualizado em 20/06/2024 10:33
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