Música

Em turnê europeia, Nádia Campos apresenta o 'Brasil Profundo'

Ao lado do companheiro e parceiro artístico, Guilherme Melo, a cantora mineira faz série de apresentações em Portugal, França e Espanha, além de promover oficinas de cultura popular. Compositora e multi-instrumentista promete novo álbum ainda neste ano

Os músicos Guilherme Melo e Nádia Campos -  (crédito: André Simões/Divulgação)
Os músicos Guilherme Melo e Nádia Campos - (crédito: André Simões/Divulgação)
Cantora, compositora e multi-instrumentista, a mineira Nádia Campos tem uma obra densa, que dialoga com a universalidade cultural e valoriza os saberes dos povos ancestrais. Com três ótimos álbuns lançados, nos quais evidencia uma consciente evolução estética baseada em meticulosa pesquisa e vivências na estrada artística, a dona de voz forte e doce atravessou o Oceano Atlântico para levar o espírito sertanejo aos palcos europeus. Ao lado do companheiro de vida e parceiro musical, Guilherme Melo, ela cumpre agenda de shows desde o fim de maio, passando por diversas cidades de Portugal, Espanha e França. Além das apresentações musicais, os encontros com o público envolvem oficinas de batuques, folias, congadas, catiras e cantos típicos do Sertão. É uma verdadeira missão internacional em que a artista atua como embaixadora da cultura popular brasileira mais autêntica, mas também com espaço para trocas e aprendizados valorosos. 
Neste exato momento, Nádia Campos está rumo à França, onde, no próximo sábado, a turnê Brasil Profundo integrará a programação do Concerts Dans La Forêt, em Bugarach. Em seguida, partirá para Portugal, em Lisboa, para apresentação na Casa da América Latina, no dia 21. E finalizará a excursão no Porto, na Casa da Horta, em 22 de junho. Antes, no início da jornada, esteve na Galícia, em Barcelona e Saragoça para outra série de apresentações, além da gravação de um videoclipe com o músico peruano Gaddafi Nuñez. Esta excursão europeia é uma iniciativa da Alumeia Produções, em parceria com Candeias Cultura e com o apoio da Carvalho Agência Cultural. O projeto foi viabilizado pelo programa Ibermúsicas, dentro do edital de apoio ao setor musical para circulação, que fomenta a internacionalização da música ibero-americana e o intercâmbio cultural.
"Expandir o público, os diálogos culturais e encontrar laços em comum entre a Península Ibérica e a América Latina é muito importante nos tempos de hoje para criar corredores culturais e divulgar uma parte da música brasileira que não é muito conhecida no exterior. No caso, uma música que tem grande relação com o Sertão, a viola caipira, a musicalidade do interior do Brasil", explica a cantora mineira em entrevista ao Correio. A experiência no Velho Continente — a segunda em menos de um ano, pois fez circuito semelhante em novembro de 2023 —, também favorece novos e importantes ensinamentos à artista brasileira. "Essa turnê está propiciando um aprendizado profundo que queremos partilhar com as pessoas do nosso país, através de registros audiovisuais que estamos fazendo, de escritos e músicas que queremos compartilhar", comenta.
As tradições das culturas populares são o ponto de partida da obra de Nádia Campos, mas a cantora tempera cada composição com uma beleza singular, influenciada por uma alma ao mesmo tempo sertaneja e cosmopolita. Poetas como João Bá, intérpretes latino-americanas como Violeta Parra e, claro, na condição de boa mineira, referências do Clube da Esquina são perceptíveis nos arranjos com acordes e melodias muito bem elaboradas. Há uma nítida linha de intenção evolutiva a cada álbum lançado, desde a estreia em Por que cantamos (2008), passando por Cantigas de Beira Rio (2013) e o mais recente, Luz Peregrina (2021). 
A poética de Nádia Campos também merece atenção. O texto de métricas variadas, exposto em voz retumbante, tem forte apelo sobre temas relacionados à natureza, ao feminino, à elevação espiritual e mesmo à cura de corações partidos, como explicita de forma corajosa na emocionante Desenfado, com criativa inspiração lusitana — uma trovadora moderna, filha de um Brasil profundo. Em tempos revolucionários na distribuição fonográfica, a cantora também investe na produção audiovisual e coleciona um respeitável acervo de muito bom gosto em canal no YouTube.
Em entrevista exclusiva ao Correio Braziliense, Nádia Campos comenta a atual turnê europeia, aponta caminhos para a evolução da política cultura no Brasil, revela planos de lançamentos para ainda este ano e deixa no ar um possível retorno a Brasília, onde tem familiares e já se apresentou em duas ocasiões. Confira abaixo:
Como tem sido a recepção do público às apresentações nessa turnê europeia? Qual é a importância de uma excursão dessa natureza?
O público europeu é diferente do brasileiro. Em geral é um público que interage pouco, porém é muito atento e valoriza a cultura. O fato de também demonstrarmos interesse pelas culturas locais, dos lugares onde estamos passando, abre muitas portas, que permitem encontrar partes de nossas raízes. 

Em termos de desenvolvimento de uma política para a cultura, que tipo de aprendizado uma turnê pela Europa oferece a um artista brasileiro? É possível fazer uma comparação entre os modelos aplicados nos países que você tem visitado e o que ocorre no Brasil?
Acho que, na Europa, aprendemos muito sobre políticas públicas e sobre a forma de organizar das pessoas em diversos setores. Aqui, encontramos diversas pequenas associações culturais, como a Artábria, em Ferrol; Gomes Gaioso, em Corunha, que nos recebeu na Galícia; a Associação José Afonso (AJA), em Portugal; O Centro de Arte e Recreio (CAR), em Guimarães, no norte de Portugal; a Casa Horta, no Porto. São organizações mantidas por pessoas entusiasmadas com a cultura, com apoios de sócios e governos regionais. Isso nos mostra a importância da organização da sociedade civil para a realização das coisas, sem ficar somente dependendo do poder público. Na Espanha, a gente quebrou um pouco a cabeça para entender essa divisão de regiões, os idiomas diferentes, mas, aos poucos, estamos entendendo a persistência de pessoas que querem manter a língua e costumes diante de uma identidade nacional muito atrelada ao fascismo do ditador Franco e à monarquia espanhola.
Não sei se é possível comparar com o Brasil os modelos de gestão de cultura. Temos muito o que ensinar e aprender. Estamos nos descobrindo enquanto nação, construindo uma identidade nacional plural, diversa, rica. Aqui, eles são bons em preservar costumes, idiomas. Nós ainda precisamos de mais investimentos em políticas públicas para a cultura, pois ainda não conseguimos uma formação de público que valorize a cultura, por diversas questões: econômicas, educacionais.

Até agora, o que mais te chamou atenção na atual turnê e qual foi seu palco predileto?
É difícil escolher um local predileto, cada lugar tem seu tempero. A Galícia é muito mágica, tem um povo amoroso e acolhedor. Barcelona tem um ar cosmopolita e multicultural interessantíssimo. Ainda vamos a França e, em seguida, será Portugal, que tem muitas semelhanças conosco.


Em relação à família, como se dá a organização desta viagem? Imagino que seja um prazer estar acompanhada por seu companheiro e parceiro musical, Guilherme Melo (na semana do Dia dos Namorados, conte-nos um pouco sobre essa relação amorosa e artística). Mas como fica o coração na hora de cantar as faixas Amanda e Negrito mio, que você compôs em homenagem aos seus filhos?
Ser, ao mesmo tempo, um casal e trabalhar é um desafio. Porque, se a gente descuida, está trabalhando o tempo todo, falando de trabalho o tempo inteiro. Às vezes, as pessoas mitificam e romantizam a vida do artista, acham que é só curtição. Claro que a gente curte, conhece pessoas, lugares, mas tem muito trabalho, como ensaiar, passar som, rever o repertório, acompanhar a divulgação, fazer registros, edições... Mas é bom poder, nas horas vagas, estar juntos, partilhar os sonhos e criar, respeitando a individualidade de cada um. A saudade dos filhos é grande. Bom mesmo seria estar com eles, mas não é possível sempre. Cantar a música deles traz saudades e nos aproxima na distância, de alguma forma.
Por que cantamos é o título do seu álbum de estreia, de 2008. São 16 anos de carreira desde então. Por que você continua cantando? E como preservar essa sua força e qualidade vocal?
Canto "porque o rio está soando e quando soa o rio, soa o rio", como dizia o Benedetti, que me inspirou neste disco. Vou seguindo com um impulso que me leva a comunicar algo profundo com as pessoas. Sinto que meu canto ressoa muitas coisas relacionadas com a natureza, com a busca de uma construção de uma identidade cultural e universal. Dentro do possível, tento ter consciência da minha voz, da minha respiração. A voz brota do meu corpo, que é um instrumento. Cuidar do corpo e da alma é cuidar da voz.

Há alguns versos um tanto inquietantes no álbum Por que cantamos. Qual seria o 'destino do cruel'? E como 'vencer na derrota'?
É engraçada essa pergunta. O texto original não era "vencer na derrota", era "vencer a derrota", mas Dércio Marques, que participou da gravação, quis mudar e deixar assim, coisa que ele fazia com outras letras que interpretava: mudar a letra para mudar o sentido. Acho que ele queria dizer que esse caminho de 'sucesso' vendido pelo capitalismo era uma falácia e não daria em nada. Cantando, fazemos o que amamos e acreditamos. Isso é o que importa. Cruel é um mundo onde o canto, a poesia e a beleza não têm valor.

Você faz algumas canções dedicadas ao público infantil. Qual é sua motivação para esse tipo de trabalho?
O trabalho com as crianças é muito prazeroso. É intenso, requer reflexão e cuidado. Para estar com as crianças, é preciso se reconectar com a criança que fomos. Produzir arte para crianças e tocar para elas e para educadores é muito importante para formação de público, valorização das raízes e da cultura popular. Fui tocada por obras dessa natureza na minha infância, como o trabalho do músico Rubinho do Vale. Sinto que é importante levar minha música para os pequenos e pequenas também.

O idioma espanhol é presente em diversas faixas dos seus álbuns. Por que essa opção? Como é a preparação e qual é o desafio de interpretar em outra língua diferente do português (brasileiro)?
Eu morei um tempo no Chile, tive uma madrinha espanhola e uma segunda mãe cubana. Sempre ouvi muita música e li em espanhol. Não sinto que é um desafio para mim a interpretação, mas rola sotaque brasileiro e uns errinhos, com certeza. Eu adoro compor em castelhano, acho uma língua muito sonora.

Como iniciou sua relação com a viola? É o seu instrumento musical favorito? Existe algum desafio particular em ser uma mulher violeira?
Meu instrumento principal, além da voz, é o violão. A viola é algo mais recente que, assim como outros instrumentos de corda, pelos quais sou apaixonada, acabou compondo a sonoridade que busco. No fundo, é uma fusão de ritmos afros e originários, com esta influência ibérica. Não me pergunte que nome tem isso (risos), não sei. Ser mulher é um desafio enorme. Por vários motivos. Pode ser violeira, cientista, solteira... As pessoas banalizaram e se acostumaram tanto com gestos e falas machistas e preconceituosas que muitas vezes nem as percebem. E, não tenho dúvida, uma mulher que é o que ela quer ser sempre vai incomodar alguém. Vai inspirar algumas pessoas também, mas tem gente que se incomoda com qualquer transgressão do status quo.

Qual é sua avaliação sobre a relevância da viola na construção de uma identidade cultural no Brasil?
A viola no Brasil é um instrumento super vivo, atual, em transformação e movimento, enquanto, em Portugal, a viola campaniça, por exemplo, por mais que ainda seja tocada, parece mais algo relacionado com o passado. A viola caipira, no Brasil, está profundamente ligada com o ambiente rural, apesar de também ser bem presente no urbano. Ela nos traz uma sonoridade que nos remete aos repentes, aboios, batuques, modas, catiras e folias de reis. É muito linda! Tem muitas afinações e possibilidades.


Como foi o processo de composição de 'Cantigas de Beira Rio'? Existe algum rio em especial em sua vida?
Eu amo estar perto de beira de rio, beira de mar. As águas me acalmam, me curam, me inspiram. Se eu durmo em um lugar em que se escuta o rio, o mais provável é que venha composição nova. Aí eu me questiono: a música é minha ou do rio? As populações se formaram em volta dos rios, a relação com eles sempre foi motivo de cantigas, versos, histórias. É um universo riquíssimo. Hoje, temos essa relação ser humano e rio extremamente adoecida, desconexa. Acho que é muito importante retomar estes afetos com a água, no fundo, com a própria vida. Amo o São Francisco, tomei banho nele algumas vezes. Hoje, está um pouco complicada a saúde do rio. O Rio Cipó, Rio Preto, Rio Verde. Atualmente, moro na parte alta do Vale do Jequitinhonha, lugar lindo e o rio anda muito sofrido também.

O que é a fé? Como ela inspira suas composições?
Não sei se eu sou a melhor pessoa para definir o que é fé. Para mim, é acreditar no melhor da humanidade, na força da natureza, na beleza da vida, no amor. Eu me inspiro na vida, na profundidade do ser humano, na poesia, na literatura, no lado sutil das coisas.

João Bá e Patativa do Assaré são referências de poetas sertanejos para você? Qual é o legado desses autores e como preservar-lhes a memória? É possível manter uma linha evolutiva do trabalho que realizaram?
Com certeza eles são grandes referências para mim. Deixaram um legado enorme de um Brasil profundo, mestiço. Eles são um portal para o Sertão e o universal também. O legado maior é uma poética que valoriza o que temos de melhor enquanto povo brasileiro. É importante zelarmos pelas memórias destes artistas, divulgando seus trabalhos, cuidando de seus acervos. Manter uma linha evolutiva no sentido de sucessão pode ser algo delicado de se dizer. Cada um é único e traz consigo referências, preferências e tempero próprio. Quando a gente cria e propaga uma arte com elo, com raiz, nunca se sente só, traz no canto, no batucar, no tocar, no expressar artisticamente de modo geral, a força dos ancestrais em transformação.


Luz Peregrina é o seu álbum mais recente, no qual você desenvolve um encontro lusófono com influência moura, africana e indígena, além de explorar culturas, instrumentos e melodias da América Latina. Parece um desafio bastante complexo sintetizar tantos conceitos. O que os fãs podem esperar de Nádia Campos em um futuro próximo? Você tem trabalhado em novas obras ou ainda é tempo de seguir divulgando e aperfeiçoando o repertório já lançado?
Tem coisas novas vindo por aí. Ainda neste ano, gravo um disco novo, produzo um documentário musical como roteirista e outras surpresas mais, mas este repertório já lançado estará sempre comigo nas horas que quiserem ecoar.

Nesse universo em constante expansão, ainda é possível esperançar?
Aqui estamos (risos)...

Quando você volta a Brasília?
Não sei ainda... Espero que logo e com a banda, de preferência.

  • Os músicos Guilherme Melo e Nádia Campos
    Os músicos Guilherme Melo e Nádia Campos Foto: André Simões/Divulgação
  • Os músicos Nádia Campos e Guilherme Melo
    Os músicos Nádia Campos e Guilherme Melo Foto: André Simões/Divulgação
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    Os músicos Guilherme Melo e Nádia Campos Foto: Arquivo pessoal
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postado em 11/06/2024 10:00
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