Valorizar o entretenimento, sem ficar pautado em conteúdos "partidários ou engajados" ou ressaltar muito material cult é uma das expectativas do cineasta Edu Felistoque, que exemplifica um dos rumos que podem ser assumidos pelos representantes do Ministério da Cultura, depois de alarde com anúncio de uma futura plataforma para o audiovisual brasileiro. A iniciativa está prevista para ser lançada ainda no segundo semestre deste ano. Promover a diversidade cultural do Brasil, ao disponibilizar, gratuitamente, conteúdos audiovisuais nacionais, entre os quais filmes e séries e documentários, está na mira da Secretaria do Audiovisual (SAV), responsável pela proposta do projeto, ainda em fase de finalização.
O consumo acessível, via SAV, já movimenta discussões na classe. Prever um leque amplo para todos os tipos de gêneros e de conteúdos mobiliza ideais de Felistoque, lembrado por filmes como Cracolândia e Amado. "Acho que a iniciativa não pode gerar um gueto de cinema nacional. Filmes brasileiros, aliás, não podem ser categorizados como um gênero; eles são muito mais. Gratuitamente, até, por antena parabólica, a plataforma poderia se ver expandida, como um canal aberto para todos. Os produtores estão todos ansiosos; muitos deles estão preocupados, as plataformas estrangeiras também estão neste compasso. Tudo tem de ser muito bem estudado; não pode ser feito de uma hora para outra — tem de ter uma consulta pública. Ouvir todas as entidades do setor para poder lançar algo dessa magnitude", avalia.
Enquanto o projeto é moldado, profissionais como o produtor e cineasta Marcus Ligocki Jr., presente desde os anos de 1990, no cenário de Brasília, trazem apostas e questionamentos. Com formação executiva em cinema e tevê, Ligocki, durante a pandemia, investiu no impulso da plataforma da XBPIX, que chegou a ter catálogo com 100 filmes. "Estudei muito, desvendei concorrentes e, na vida, tive como foco a visibilidade e a penetração de filmes junto aos mercados nacionais e estrangeiros. A discussão da plataforma nacional é antiga, e, novamente, o governo acolhe isso. Há um ideal de se abrir caminho para os pequenos realizadores, aos que não sejam tão populares e que não gozem de estabelecido prestígio. Nisso, tenho dificuldades de acreditar."
Se a plataforma vier a licenciar conteúdos, por valores dignos, por períodos definidos será bom. Mas, diante da dinâmica do governo, da relação com o público e das demandas sociais, duvido que os profissionais sejam remunerados à altura", avalia o diretor.
Ligocki atenta que as plataformas que se mantêm são as maiores do planeta e que não é um jogo simples. "Há o risco, de cara, de, dado o uso anterior de recursos públicos (para a criação das obras), se torne obrigatória a disponibilização, de modo que se mate qualquer valor futuro dos conteúdos (leia-se, filmes). Uma ideia seria a da conquista do público, de fazer com que ele busque os conteúdos. Mas há tanto volume (de opções nas plataformas) que as pessoas não param mais para assistir. O ineditismo (dos conteúdos), neste jogo, é dos mais valiosos", opina.
A proposta do governo terá o desafio de uma luta muito forte na atração de um público cada vez mais exigente. "Acho que deveriam estimular os realizadores vocacionados e criativos com mecanismos que qualificassem a criação de um design de narrativa alinhado ao dos valores percebidos nas plataformas privadas. A simples ampliação do volume de obras, sem força de atenção para o lançamento de cada título, não parece eficiente", comenta o produtor de Rock Brasília — Era de ouro. No despertar de interesse do público em acessar "todo tipo de linguagens de filmes", ele vê alicerce fundamental: conciliar o ponto de vista de ideias autorais (dos diretores) com o hábito de consumo imperante nos espectadores.
Nada de entulhar filmes
Cibele Amaral, há mais de 20 anos atuante como produtora e diretora do ramo, à frente inclusive de séries (também destacadas no projeto em andamento pelo MinC), atenta para os tipos de produtos que serão colocados à disposição. "A ideia, à primeira vista, é muito boa: ter projeção para nossos filmes (nacionais), que penam com a questão da difusão e da distribuição. Mas, simplesmente ter um lugar para que filmes sejam depositados, não é necessariamente algo benéfico. Interessante será se filmes que não tenham características para o grande público (em circulação) se projetem", avalia.
Uma das questões nas tratativas de discussão do VoD (video on demand), junto às grandes empresas, está na garantia de cotas de filmes nacionais dentro do streaming, segundo explica Cibele. "No caso da plataforma do governo, temos de ter marketing de modo que os filmes sejam colocados de maneira potente no mercado. "É necessário que se assegure uma projeção para os filmes desta plataforma, e ainda a comercialização deles. Pode ser interessante comercializar lançamentos, e ver como se comportam. Como um todo, no processo, enquanto setor e classe, acho que gostaríamos de participar do processo de criação desta plataforma", opina Cibele. O Fundo Setorial do Audiovisual, que azeita toda a atividade de expansão do cinema nacional, pela percepção de Cibele será o primeiro interessado em receber de volta (recursos) para realimentar a cadeia de produção (a partir de negociações de títulos para a nova plataforma). A profissional ainda se diz interessada no impacto da medida governamental, junto a distribuidores, que comercializam filme, e na atuação de agentes de vendas que negociam (no exterior) conteúdos com televisões, companhias aéreas e streamings (estrangeiros).
Mero cinemão?
Ator de ocasião no longa Baiano fantasma (1984) e criador de cinema em Brasília, desde o curta A cucaracha (1998), Pedro Lacerda arrisca um panorama sobre o futuro do cinema, que, claro, passa por intensificação do uso de plataformas. "É um valor muito alto, a manutenção das salas é grande. O cinema, como ainda existe, foi socorrido, no mundo todo, quando da pandemia, para não falir. No futuro, o holograma, que já é uma realidade, estará sendo projetado nas salas de cada pessoa, por meio do celular. "Acho que as mostras, os debates e os congressos ocuparão locais das salas". Quanto à alocação de filmes e séries, em uma plataforma estatal, ele traz "perguntas de R$ 1 milhão", como diz: "Será que reforçarão aspectos do cinemão mais comercial? Qual será o conceito deles, ao analisar os produtos? A classificação indicativa vai pesar? O conceito será diferente do grande mercado que traz filmes com sexo, drogas e violência?"
Além de ver espaço para grandes clássicos como O pagador de promessas, Deus e o diabo na terra do Sol, Lacerda diz que gostaria de rever, no acervo, os filmes criados nos estúdios Vera Cruz. "Esperamos que a assinatura seja gratuita e no tipo de filme a ser selecionados haja favorecimento daqueles de baixo orçamento feitos pelos pequenos realizadores. Outra coisa importante: não dá para colocar os filmes de graça, por lá. É esperado que paguem pelo nosso trabalho", comenta Pedro Lacerda. Numa bem-vinda idealização da plataforma estatal, ele crê no cumprimento de parte da lei 12.485, que prevê o acesso de 30% do FSA para criação de produtos no Norte, Nordeste e Centro-Oeste — sem privilégios para o eixo Rio e São Paulo. Sem filmes negociados com o Canal Brasil e mesmo junto à TV Brasil — EBC, como pretendido, Lacerda pensa que, com a nova plataforma, haverá avanços por circuitos de tevês culturais, e ainda que a plataforma fortaleça esquemas de exibição em canais das universidades.
Palavra de especialista
"A ideia de uma plataforma popular do governo de streaming não vem de hoje. Em estudos, ela é muito bem-vinda. Mais de 40 milhões de brasileiros já utilizam alguma plataforma e operam, hoje, mais de 250 plataformas. Quanto mais exibirmos nossos nossos conteúdos, diversificados e os populares, sejam em séries, documentários, vamos fomentar a cultura e incentivar nossa indústria, com reserva de mercado para o produto nacional. Claro que será necessária a regulamentação, e há o caso da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, referente à renda com exploração de obras brasileiras) que, nas plataformas, ainda não foi resolvido de forma adequada — coisas como cota nacional (em discussão). Para a plataforma, temos que ver como funcionará a negociação e o licenciamento, tratando ainda dos direitos dos produtores. Licenciamento das obras que se permite que as produtoras se sustentem e contratem serviços, gerando empregos, para quem trabalha no cinema nacional. Produtoras não sobrevivem somente por causa de editais e de fomentos — há o licenciamento na venda dos seus produtos. Caso exista uma uma regra nova, como a de que as plataforma tragam produções ligadas a editais da Ancine e afins, tenham que ser exibidas como primeira janela na plataforma e distribuída ao governo como primeira janela?... Isso impactará negativamente uma vez que para primeira janela o valor dos filmes será afetado nas janelas subsequentes, dada a queda do ineditismo. Não podemos pensar, simplesmente, em exibir gratuitamente e esquecer a indústria do audiovisual. Existe algumas especificidades, por exemplo, em projetos como Gente de Expressão (da Ceilândia): eles mantém um cineclube. Às vezes, se pensa em exibições que requerem autorização do produtor. A partir de uma plataforma dessas, seria ótimo alimentar as pessoas que não têm acesso às plataformas. A plataforma, de forma gratuita, com curadorias de cineclubes trarão multiplicadores culturais e de opinião"
Edu Felistoque, cineasta