As guerras de descolonização fisgaram o italiano Uliano Lucas no fim dos anos 1960. Depois de fotografar as revoltas operárias e estudantis que marcaram a Europa em 1968 e 1969, o fotógrafo decidiu aceitar um convite do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e seguiu para a África com a missão de documentar a luta pela independência das então colônias portuguesas. De lá, Uliano seguiria para Angola e outros países com o intuito de documentar a descolonização no continente africano. Parte desse trabalho está em Revoluções — Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974), exposição em cartaz no Museu Nacional da República.
Uliano tinha 27 anos quando pisou na África pela primeira vez. Era um jovem fotojornalista com alguma experiência no registro de conflitos e desembarcava acompanhado do jornalista Bruno Crimi. A dupla faria reportagens sobre as áreas libertadas da Guiné-Bissau e acompanharia o processo de independência. A intenção do PAIGC era dar visibilidade a uma luta cuja repercussão ainda não havia sido internacionalizada. As imagens de Uliano acabaram publicadas nos maiores jornais europeus e ajudaram a colocar a descolonização na pauta. "Pouquíssimos jornais europeus e americanos falavam sobre esses acontecimentos, diante da violência portuguesa havia uma forte cumplicidade do Ocidente. Tratava-se, então, de aceitar o convite dos movimentos de libertação e contar a sua luta por dentro, dando-lhe visibilidade, tentando compreender e transformar em imagens a dinâmica e os ideais de um processo que era tanto de descolonização quanto de construção de sua própria história", conta Uliano, hoje com 81 anos, em entrevista ao Correio.
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Da Guiné-Bissau, o fotógrafo seguiu para Angola, onde acompanhou os guerrilheiros do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA). Uliano tinha muito claro que tipo de imagem queria realizar. Com clara noção do momento histórico, sabia estar diante do nascimento de novas nações e identidades. Se boa parte da sociedade europeia criticava a descolonização, Uliano se debruçava sobre um outro olhar. A ele não agradavam as imagens de guerrilheiros armados e sujos de sangue. O italiano optou por focar nos jovens homens e mulheres "lutando por sua própria dignidade e liberdade".
Em 1972, Uliano voltou os olhos para Portugal, que ainda se debatia com os últimos momentos da ditadura do Estado Novo, tocada na época por Marcello Caetano, que substitui Antônio Salazar em 1968. "Eu estava indignado com a existência, na Europa libertada do nazi-fascismo, de uma ditadura colonialista como a ditadura portuguesa de Caetano, onde os opositores estavam presos, as liberdades não existiam e que insistia em reprimir violentamente o desejo de liberdade e independência dos povos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", conta.
O fotógrafo queria mostrar como era a vida em um país sob ditadura, cuja economia fragilizada marcava imenso atraso em relação ao resto do continente, e governado por um grupo conservador. A Revolução dos Cravos, organizada por um grupo de militares para derrubar a ditadura, colocou um fim ao Estado Novo português e foi registrada pelo fotógrafo com entusiasmo. "Ao fotografar as marchas que surgiram espontaneamente após a Revolução dos Cravos, me senti parte da euforia pela liberdade conquistada, da esperança de um novo futuro, mas, acima de tudo, lembrei-me da alegria dos italianos que se manifestaram nas ruas pela queda da ditadura de Mussolini em 26 de julho de 1943", lembra.
Entrevista//Uliano Lucas
Qual o maior desafio na cobertura desses movimentos e dos conflitos que eles desencadearam?
A tentativa foi narrar uma guerra de libertação sem ênfase e retórica, documentando o processo de formação, nas áreas já libertadas, de um embrião de democracia, de um novo Estado, que eu via e fotografava. Eu não estava interessado em me ater ao estereótipo da violência da guerra, mas estava tentando documentar as assembleias da população na floresta, as cooperativas agrícolas, os hospitais espalhados pelo território, as escolas, a educação higiênica e sexual dos adultos, os debates políticos. Essa vida viva, essa afirmação de si mesmo por parte dos combatentes e pela população me fascinavam e procurei representá-las em toda a sua complexidade.
O que interessava ao senhor fotografar durante essa cobertura?
Era necessário superar e desmistificar o clichê com o qual grande parte da imprensa de grande circulação na Europa, alinhada contra a descolonização, representava os combatentes africanos, mostrando-os em fotografias construídas, com punhal ou metralhadora na mão e camisas manchadas de sangue, como se tivessem acabado de sair de uma fazenda onde haviam massacrado colonos brancos. Estas imagens aterrorizantes precisavam ser contrapostas por fotografias capazes de mostrar um mundo de jovens homens e mulheres conscientes e determinados, lutando por sua própria dignidade e liberdade.
Qual o aspecto mais importante de uma cobertura de conflito?
Não existe uma resposta única. Tudo depende do cliente. A fotografia é uma mercadoria, há aqueles que querem mostrar a violência, o sangue, aqueles que se detêm sobre os idosos e as crianças e seu sofrimento, aqueles que dobram o evento para suas posições políticas. Eu sempre considerei importante contar o cotidiano, as dificuldades de sobrevivência, nessas guerras intermináveis que estão destruindo o mundo.
Como era sua relação com os guerrilheiros do MPLA? O senhor se deslocava com eles? Como sabia que era o momento certo de fotografar?
Os guerrilheiros tinham consciência da importância do meu trabalho, sentiam que as minhas fotografias estavam dando a eles e à sua causa uma representação justa e uma visibilidade sem precedentes nas páginas dos jornais. Eu era um amigo que estava tentando contar a história deles, sua vida, suas dificuldades. As fotografias foram o resultado dessa compreensão e cumplicidade, não foram fotos roubadas, mas nasceram no momento em que o olhar do fotógrafo cruzava com o do fotografado.
O que é uma boa cobertura de movimentos como o ocorrido em Guiné-Bissau e em Angola:? Que imagem
não pode faltar?
Não é tanto uma questão de imagem, mas de motivação. O fundamental é acreditar na função social do fotojornalista freelancer, na sua participação e adesão ao evento que está vivenciando. Contar a história de um povo invisível com honestidade e solidariedade.