Personalidades, 12 intensos dias com o melhor do cinema mundial numa vitrine frequentada por mais de 35 mil pessoas, que junta solenidade e glamour nos arredores do Grand Théâtre Lumière — tudo isso possibilitado pela 77ª edição do Festival de Cannes, a ser aberto hoje com a exibição do filme fora de competição The second act (de Quentin Dupieux). Até dia 25, em meio à festa prestigiada pelo ganhador do Oscar, Michel Hazanavicius (O artista); por Meryl Streep, convidada de honra, 35 anos depois de premiada como melhor atriz pelo longa Um grito no escuro, e ainda por artistas como Catherine Deneuve, Selena Gomez, Valeria Golino, Dustin Hoffman e a cineasta brasileira Juliana Rojas (que integra o júri do segmento queer, aplicado em filmes com temas LGBTQIA ); o Brasil volta à relevância.
Na gama de 22 filmes concorrentes ao prêmio central — a Palma de Ouro —, destaca-se, com exibição no dia 22, o longa Motel destino, do brasileiro Karim Aïnouz (leia entrevista com ele, que teve formação na UnB), à frente de fita com Fábio Assunção. No filme, em motel de beira de estrada, personagens vivenciam experiência noir que mescla violência e desejo. "No ano passado, em Cannes, a primeira coisa que eu falei, ao microfone, foi: 'Viva o Lula e viva a Argélia', uma vez que a Argélia (país do meu pai) vivia um momento politicamente complicado. Lá, saem as verdades, quando a gente está no lugar de fala. O mundo inteiro nos ouve, é o terceiro evento mundial com maior concentração de imprensa, junto com o Oscar e a Copa. Vou falar alguma coisa sobre o Rio Grande do Sul. É importante falar disso. Voltei agora de um evento para arrecadar fundos. É uma tragédia, não se pode esquecer que eu venho do Ceará, um estado que já passou por tragédias com as secas. Não comparo uma coisa com a outra. Além da tragédia do aquecimento global, não estamos preparado para isso. O mundo precisa ter noção do que está acontecendo", pontua ao Correio.
O dia 19 terá outra sessão que, em especial, atingirá o povo brasileiro: a do documentário Lula (assinado por Oliver Stone e Rob Wilson), realizado entre 2018 e 2019, período em que Luiz Inácio Lula da Silva esteve preso. Na celebração dos 20 anos da sessão Cannes Classics!, a vez será dos produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto, que estarão presentes na projeção de Bye bye Brasil (1979). Já na esfera da competição de 11 curtas-metragens, mais uma participação brasileira: André Hayato Saito levará o filme Amarela. Quem ocupará o comando do júri será a diretora Greta Gerwig (de Barbie). Ela estará ao lado de Lili Gladstone (atriz indicada ao Oscar por Assassinos da lua das flores), Eva Green (Os sonhadores), o ator Omar Sy e o japonês Kore-Eda Kirokazu (diretor do aclamado filme Monster). Fora da competição serão exibidas verdadeiras sagas de grande apelo: Furiosa: uma saga Mad Max (prévia do filme de George Miller, amanhã) e o esperado Horizon, uma saga americana (assinado por Kevin Costner), com três horas de duração. Medalhões da sétima arte desfilarão com elencos e filmes. Na trupe mais do que esperada, estará Francis Ford Coppola (que, na quinta, mostrará Megalopolis). No longa, ele aproveita a estrutura de sociedade aos moldes romanos e contrapõe tudo ao status quo e ainda a avanços progressistas, com direito a elenco composto por Jon Voight, Shia Lebeouf e Adam Driver.
Na sexta-feira, a programação esquenta, com o novo longa do grego Yorgos Lanthimos, que alinha a vencedora do Oscar Emma Stone aos colegas Jesse Plemons e Willem Dafoe, numa trama centrada em liderança espiritual, caos e crise conjugal, no longa Kinds of kindness. Fictícias inovações tecnológicas se instalam nos longas The substance (de Carolie Fargeat) que traz personagens de Demi Moore e Dennis Quaid buscando meios de exibir a melhor versão de si e, em The shouds, do perturbador David Cronenberg, que sonda os investimentos de um empresário com a tecnologia GraveTech, numa trama que descamba para profanação de túmulos e traz interpretações de Diane Kruger e Vincent Cassel. Enquanto o português Miguel Gomes promete retratar os desdobramentos de um casamento de 1917, nunca consumado, em Grand tour; o diretor norte-americano Sean Baker, em Anora, mostra a ameaçada união de um oligarca russo com uma ex-prostituta. Sebastian Stan (o Bucky Barnes dos filmes da Marvel) deve causar, no festival de repercussão mundial, ao interpretar um jovem Donald Trump ainda nos primeiros passos das negociatas imobiliárias, no longa The apprentice (de Ali Abbassi), estrelado ainda por Maria Bakalova (de Borat 2). Antigo roteirista de filmes impactantes e dono de filmografia provocativa, quase aos 80 anos, o cineasta Paul Schrader comparecerá a Cannes com o longa Oh, Canada, estrelado por Richard Gere e Uma Thurman, e que promete tratar de confissões, sem filtros, da vida de um fictício documentarista empenhado a deixar um tributo à verdade. Também sempre dispondo ambiente tenso e realista, o diretor Jacques Audiard apresentará Emilia Pérez. No filme, pesa a história de virtual estímulo na carreira de advogada cujo destino será mudado pelo contato com um líder do cartel de Manitas que pretende debandar dos negócios. Edgar Ramirez (de Dr. Death) e Zoe Saldaña estrelam.
Finalmente, o sempre radiante cinema de Christophe Honoré fará uma saudação ao eterno galã e talentoso Marcello Mastroianni (morto em 1996). Em Marcello Mio, longa estrelado por Chiara Mastroianni, a filha do astro encampa a ideia de, literalmente, reviver o pai e circular pela sociedade, exigindo o tratamento de Marcello. Além de um marco para a sétima arte, com George Lucas (o ícone setentista que gestou a saga Star wars) faturando a Palma de Ouro Honorária, Cannes terá Jean-Luc Godard (em filme testamento de 18 minutos, do assistente dele Fabrice Aragno), e retorno à memória de Elizabeth Taylor (em The lost tapes, a partir de arquivo da estrela), além de François Tuffaut (morto há 40 anos), presente em Scénario de ma vie.
Entrevista Karim Aïnouz, cineasta
Como vê o retrato especial do Brasil, em Cannes?
Há de se destacar: pela primeira vez na competição, há um longa filmado no Ceará, temos um filme sobre o presidente eleito Lula, feito por americano; temos um filme na Quinzena de Realizadores (A queda do céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha); outro, na Semana da Crítica (Baby, de Marcelo Caetano) e tem um curta competindo. Não há como ter mais! Acho incrível que a gente esteja lá, depois do que vivemos com aquele governo fascista. Foi uma loucura nesses últimos quatro anos, e a gente poder voltar e estar em todas as seleções. Isso é um fato histórico. É motivo de comemorar: como a gente consegue cicatrizar rápido?! Todos os filmes foram feitos ano passado, eles foram cancelados durante o movimento da extrema direita. Temos gerações diferentes de lugares diversificados: é demais, incrível, me dá um p... tesão, independentemente de ter prêmio ou não. É uma prova de que a gente está bem.
O erotismo retratado em Motel Destino traça liberdade em um caminho pesado?
O filme tem mais suspense e erotismo do que violência. Há duas mortes, que acontecem por acidente. Foco o erotismo como afirmação de vida, de desejo. Tem um rito de passagem do personagem Heraldo (Iago Xavier), num final surpreendente. É um filme noir equatorial — feito no Ceará. Trazemos medo e perigo, mas não é um filme violento. Traz a pulsão de vida e o lugar de encontro na sexualidade. É explicitamente sexual, sem ser gráfico, e sempre me questionei: 'Por que não mostrar". Cada vez mais, os filmes estão mais violentos e menos vitais. Vivemos um momento histórico em que importa quebrar certos tabus. Parece que a gente ficou proibido de falar disso. Sexo tem que ser alegre: vivemos num lugar em que sexo não rima com dor, mas com celebração de vida!
Ter Meryl Streep, Coppola e Schrader no festival contigo?! Que relação tem com eles e qual teu chamariz para sempre estar em Cannes?
Acho que frequentemente estou lá, é complicado me acusarem de ter sociedade (risos) com eles. Tenho uma relação muito boa com festival, que apostou em mim desde o começo. Tenho, sim, sido selecionado. Cannes traz algo dos festivais de Berlim e Veneza: ele preza por um um cinema que tem assinatura. Você olha para um filme do Almodóvar e sabe que é dele! Ninguém consegue fazer aquilo igual — há um jeito muito próprio. Cannes acompanha a política dos autores, desde a década de 1950. O festival acompanha o meu trabalho desde que fazia o roteiro de Madame Satã (2022). É importante para o festival ter a gente lá e a gente sabe da importância do evento. Motel Destino não teria jeito de ter sido feito por outra pessoa. O cenário do cinema traz filmes anglo-saxões absolutamente cruciais, mas a gente não sabe quem fez Jurassic park... Cada vez é um diretor. Cannes demarca as caligrafias. E, respondendo: não sou amigo do Coppola, nunca jantei na casa dele (risos). Mas, sim, estamos todos fazendo cinema: há ótimos artistas americanos sendo homenageados. Quando você fala de cinema mundial, acho que nem 10% são de outra língua que não inglesa e ser tratado de forma igual?! Eles horizontalizam um cinema que, no geral, seria dominado pelos estúdios de Hollywood. Não é sobre eu e o Coppola! Ele é um mestre que ninguém precisa contar quem seja, faz parte do cânone. Ele não é mais legal do que eu, ou vice-versa (risos). É entusiasmante ver reunidas obras de lugares muitos distintos. Todo mundo sobe o mesmo tapete vermelho lá; no Oscar, a gente (estrangeiro) entra pela porta do lado. Celebrar, juntos é excelente, já que a gente está, o tempo inteiro, a perigo.
Teu cinema é regional ou universal como é o cinema do teu concorrente em Cannes Yorgos Lanthimos?
Motel Destino é local e universal fico. É falado em cearês. Os filmes que eu faço são locais, como O céu Suely (2006). Fiz Firebrand (2023), ao norte da Inglaterra (concorrente em Cannes, no ano passado), com personagens locais ingleses. O apelo universal do coração do Henrique 8.º (de Firebrand) é muito parecido com meu coração de hoje e do teu de amanhã. Filmes têm personagens de vulto e que trazem para o universal. Para frente ou para trás, na carreira, busquei personagens que me intrigavam. Faço meu próximo longa com o roteirista Edfthymis Filippouque, em setembro, ele é colaborador do Lanthimos (em Kinds of kindness, em 2024, Dogtooth e O lagosta). É um cara que está ali fazendo um cinema mundial em língua inglesa. Com a Grécia (terra de Filippouque) aconteceu meio que como com o Brasil, uma crise gigante como no Brasil. Ele foi trabalhar em Londres, daí. Ele vem do sul da Europa, de um lugar periféricão. Como na época da pandemia tratamos de como é que se mantém vivo, por exemplo, como um cantor que não muda a sua voz e não refaz. Para seguir, ele não faz plástica ou se transforma em outro.
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