Quando Tom Cardoso começou a escrever Trocando em miúdos — Seis vezes Chico, esperava encontrar um personagem menos beligerante do que Caetano Veloso, sobre o qual escreveu livro no mesmo formato. Enganou-se. O Chico Buarque perfilado pelo jornalista em Trocando em miúdos compra brigas, se envolve em polêmicas, fala o que pensa e não contemporiza. É um Chico pescado no calor da hora das dezenas de entrevistas pesquisadas para o livro, pensado para cpmemorar os 80 anos do compositor, celebrados no próximo 19 de junho.
Como fez com o volume dedicado a Caetano para comemorar a mesma ocasião, Cardoso dividiu o livro em seis capítulos e evita chamá-lo de biografia. "A editora chama, mas não gosto desse rótulo, diria que é mais um ensaio jornalístico, não uma biografia tradicional contando toda a vida", avisa. A política, a literatura, a fama, o futebol e a censura são os fios condutores da narrativa, que deixa de fora o compositor e evita entrar em análises musicais. "O Chico compositor é muito dissecado, então pego aspectos mais pessoais, mas tudo que está ali também está ligado ao processo de composição", explica Cardoso.
O Chico político dá início ao livro. Apoiado em uma compilação de entrevistas concedidas pelo compositor ao longo de décadas, o autor investiga a presença da temática política na obra do artista para concluir, com certa surpresa, uma rejeição quando se trata das canções versadas em comentários referentes aos acontecimentos políticos de diferentes épocas. "A política só fez mal ao Chico artista", garante o autor. "Ele mesmo diz que as canções com menos qualidade são as políticas e rechaça o rótulo de canção de protesto." Segundo Cardoso, Chico Buarque resolveu compor canções políticas mais por obrigação do que por vontade. Para o compositor, artistas como ele, com grande projeção, teriam a obrigação de se posicionar politicamente porque são blindados. "Dificilmente alguém iria prendê-lo e torturá-lo sem grandes repercussões. As canções da época da ditadura, se fosse por escolha dele, ele nem teria feito. Ele acha que há outras superiores", garante.
Um capítulo inteiro é dedicado às polêmicas nas quais Chico Buarque se envolveu ao longo da vida. A briga com Millôr Fernandes, por exemplo, resultou em um cusparada na cara do cartunista, um ato extremo para um Chico tido como "cuidadoso com as pessoas, flexível, de temperamento dócil". Depois de sucessivas provocações, com ênfase naquelas com potencial de parar nos jornais e que tratavam o compositor como um letrista ruim, ele estourou. Outro incômodo era com Elis Regina, que liderou a marcha contra a guitarra elétrica, à qual Chico não aderiu. Ela ficou de fora da música Para todos, mas o compositor garante que foi por falta de espaço, e não por ressentimento, segundo o autor. A vaia de Gilberto Gil durante a Bienal do Samba, organizada pela Record em 1968, também está no capítulo. Barrados do festival, os tropicalistas ficaram irritados e protestaram. Mas, segundo Cardoso, a vaia de Gil, o baiano revelaria anos depois, não foi vaia e sim uma tentativa de calar o protesto enquanto Chico cantava o samba Bom tempo. "Até existir a explicação do Gil, Chico ficou muito chateado. Eles sempre foram amigos mas, nesse período de discussões acaloradas, eles andaram se estranhando".
No capítulo Fama, surge o antiartista, assustado, no início, com a repercussão de A Banda e a transformação instantânea em celebridade. Em vários momentos o autor expressou, em entrevistas, o desconforto com o palco e confessou que queria mesmo era ser escritor. "O Chico era o antiartista, tem fobia de palco, chegou a ficar um tempão sem se apresentar, tinha que tomar lexotan", conta Cardoso. Foi Nara Leão quem deu o empurrão para destravar o compositor de Apesar de você. Chico gostava mesmo era de devorar os livros da biblioteca do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil.
Mas, como o pai, que era professor universitário para poder pagar as contas, o compositor fez da música um meio para viabilizar a carreira de escritor. "É o que o Chico sempre quis fazer", garante Cardoso, ao lembrar de entrevista ao jornal argentino Clarín na qual o compositor diz se considerar um escritor mais completo do que um músico. "Ele acha que é um escritor que está acima do compositor. Não concordo, ele é genial como compositor e é um bom escritor, mas não no mesmo nível."
Algumas entrevistas — especialmente com Ana de Holanda, irmã de Chico, Silvia Buarque, filha do compositor e músicos com os quais trabalhou — ajudaram a orientar a pesquisa do livro, mas o grosso, Tom Cardoso buscou em entrevistas de arquivo. "Não tive a preocupação de entrevistar o Chico. Ele é a pessoa menos interessante para falar dele mesmo. Acho muito mais interessante resgatar o Chico de jornais que nem existem mais e que se tornaram entrevistas inéditas porque, se você procurar no Google, não acha", diz o autor, que encontrou parte do material na Biblioteca Nacional. "Isso é mais rico do que 40 minutos numa sala e ele falando de forma mais protocolar."
Trocando em miúdos — Seis vezes Chico
De Tom Cardoso (foto). Record, 280 páginas. R$ 79,90