Pessoas comuns são portadoras de dons extraordinários, capazes de conquistas grandiosas. Esse é o ponto de partida do livro recém-lançado Mãos de Deus — Biografia Autorizada do Padre Júlio Lancellotti, escrito pelo jornalista Luiz Eduardo de Carvalho. Com 432 páginas, a obra se faz necessária, neste momento ainda turbulento da história brasileira, para compreender e entender a trajetória de uma pessoa profundamente ligada às questões humanitárias. A Pastoral do Povo de Rua, que tem o padre Júlio como vigário, por exemplo, completa, em 2024, 31 anos.
"Trata-se de um homem e um clérigo de ação", destaca Carvalho nas primeiras páginas do livro sobre a vida do Padre Júlio Lancellotti. O próprio religioso se apresenta em favor dos desvalidos: "O amor de Deus não se entende nem se explica. Ele é para ser vivido. Não posso dizer 'eu entendi o amor de Deus'. Tenho de ver se, dentro das minhas possibilidades, eu pratiquei o amor de Deus. Se compartilho meu alimento com quem tem fome, se luto pelos direitos de todos e não só pelos meus, se facilito o acesso à educação, se cuido dos doentes, se respeito as diferenças, se incluo os idosos, se protejo os fracos."
Carvalho mapeia a vida, desde a infância, de Júlio Lancellotti, como a atuação no Presídio Feminino do Tatuapé (SP); a Pastoral do Menor, que influenciou fortemente a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente; a abertura e manutenção da Casa Vida, de acolhimento a crianças portadoras do HIV; além da Pastoral do Povo da Rua, hoje, sua principal luta na capital paulista.
"Eu li mais de 600 reportagens, ouvi seguramente mais de cinco horas de matérias radiofônicas e televisivas, fiz uma imersão gigantesca na hemeroteca da Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, em que eu consultei diversos jornais e revistas. Resgatei 268 artigos escritos e assinados pelo padre em jornais de grande circulação de São Paulo. Todo esse material foi a base de pesquisa", ressalta Carvalho ao Correio. Essa é a primeira obra de não ficção do jornalista, conhecido pelos livros de poesia, de contos e de romances premiados.
Além de uma cronologia detalhada sobre a vida de padre Júlio, Carvalho apresenta depoimentos de personalidades, como Eduardo Galeano, Gilberto Kassab, Sílvio de Almeida, Monja Coen e Pai Dinho D'Ogum. "Haverá 'Júlios Lancellottis' no mundo que, à luz da prática de Jesus, vergam-se sobre os caídos na estrada, famintos e doentes e socorre-os", escreve Leonardo Boff na apresentação da biografia. Comedido nas palavras, por orientação de advogados, padre Júlio pouco fala com a imprensa, depois de ameaças e processos contra sua atuação, mas concedeu entrevista exclusiva ao Correio.
ENTREVISTA: Padre Júlio Lancellotti
Qual a diferença entre amor e ideologia? Aí incluo a trajetória de Jesus Cristo, como exemplo...
Eu penso que é uma grande reflexão saber a diferença entre amor e ideologia. O amor é uma decisão, uma escolha. O amor é um sentimento, mas também é uma direção. O amor (também) é uma dor. A ideologia pode não ter a dimensão de se doar à vida que o amor tem.
O que mais magoa o senhor?
O que mais me causa impacto é a maldade deliberada. É planejar fazer o mal, sabendo das consequências. Sabendo para onde essa maldade vai levar. Destruir pessoas, destruir a vida, destruir e destruir. Isso magoa muito.
O senhor completa 76 anos em dezembro. De que aquele menino, nascido num bairro da Zona Leste paulistana, sente saudade?
Eu não sinto saudade. Sinto que (tudo que passei) faz parte da vida e é uma página que não pode ser arrancada do livro, faz parte da vida.
Qual a importância de dom Luciano Mendes de Almeida, então bispo auxiliar de São Paulo, que celebrou sua ordenação em abril de 1985?
Dom Luciano é um santo, foi sempre como um pai, um irmão, um amigo. Dom Luciano é fundamental. Eu não me entendo sem a presença de dom Luciano.
E o cardeal dom Paulo Evaristo Arns?
Dom Paulo Evaristo é um grande sinal para o Brasil e para o mundo na luta pelos direitos humanos, pela democracia, pela vida e, sobretudo, um coração paterno. Ele sabia nos proteger, orientar, corrigir com amor. Dom Paulo é um pai que ama com o coração de mãe.
Estamos vivendo num mundo em que as fake news e a inteligência artificial usadas para difundir o ódio ocupam grande espaço nos corações e mentes das pessoas. O que podemos fazer para
conter esse mal?
Devemos ter mecanismos, e eu acho que o próprio mundo tecnológico vai ter de encontrar um meio de controle. Mas eu acredito que uma questão fundamental e decisiva é a regulamentação das mídias sociais. Têm de ser regulamentadas.
Qual o seu maior medo? Qual sua maior esperança?
Meu maior medo é não ter esperança. E a minha esperança é caminhar sem medo.
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