Com uma vida que caberia no cinema, e coube, o escritor Paul Auster, nascido imediatamente no pós-guerra de 1947, morreu na noite da última terça, dado o devastador avanço de câncer de pulmão, diagnosticado há menos de dois anos. Aos 77 anos, deixou um legado de mais de 30 livros, com traduções para 40 países. Entremeando ficção e realidade, como no texto de A invenção da solidão (1982), Auster abasteceu com vívidas memórias, os romances que tematizaram muito a questão da paternidade. Dados autobiográficos se espalharam em Da mão para a boca (1997), quase 10 anos depois da consagração dele, com a chamada A trilogia de Nova York, integrada pela quixotesca City of glass, em que personagens atravessam a escrita do autor; Ghosts, no qual cores ditam nomes para os personagens e The locked room, em torno de um artista que se apropria da criatividade alheia.
Em 2021, Auster viveu o drama pessoal de ver o filho, o paisagista Daniel, condenado pela morte da neta de Auster, Ruby, que completara 10 meses. Uma overdose, há dois anos, matou Daniel. Violência e pistas enganosas nutriram, pela vida, a produção de Auster. No derradeiro romance, Baumgartner, a ser publicado no Brasil, Auster trata do peso da lacuna de um grande amor. Os efeitos de uma recente separação se instalam em Desvarios no Brookyn (2005), livro que trata dos desvio de rota na vida de abatido sessentão, aposentado, e já inclinado para a morte.
Paul, que era filho de judeus (uma herança de Samuel, o pai, garantiu sua estabilidade na carreira), teve por muitos inspiração na literatura de Franz Kafka. Em ficção, desenhou o destino de divergentes amigos escritores, em Leviatã (2001): um deles tendo por plataforma ações concretas, e o outro dependente da capacidade intelectual. Pai da atriz Sophie, Auster foi casado com duas escritoras. Lydia Davis esteve com ele no começo da carreira, em temporada francesa, na época em que viveu de traduzir poetas; já Siri Hustverdt o acompanhou até o fim da jornada. Celebrado pela desenvoltura nos suspenses policiais, Auster era louvado pela capacidade de ordenar narrativas ao modo de labirintos e ainda pelo apelo de adentrar pensamentos dos personagens, indistintamente.
Um dos grandes momentos da carreira veio com a publicação de 4 3 2 1 (em 2017), com personagem central, Archie Ferguson, nascido em 1947 (mesmo ano de nascimento de Auster, em Newark, Nova Jersey). A jornada de Ferguson contempla o imprevisível, com quatro vias possíveis (em mais de 800 páginas) para o personagem que deu chão para referenciar a si mesmo e ser finalista do Man Booker Prize.
Vida de filme
Jogadores de pôquer tornados reféns (no filme Jogando com a sorte), pessoas em situação de rua (no texto, de 1999, Timbuktu) e diversificada fauna nova-iorquina sedimentaram a carreira de Paul Auster nos cinemas. Muito assentado no bairro do Brooklyn (no qual Auster viveu, intensamente), como no caso de Sem fôlego (1995), que ele codirigiu com Wayne Wang, e trazia, numa tabacaria, tipos que assumiam improvisos e representavam uma sociedade alternativa, como personificado pelo compositor Lou Reed, por Madonna e ainda o cineasta Jim Jarmusch.
O honconguês Wayne Wang ainda emplacou com roteiro de Auster (a partir de conto dele), em 1995, o longa Cortina de fumaça. A fita, com elenco formado por Harvey Keitel e Stockard Channing, conquistou o Prêmio Especial do júri no Festival de Berlim, e se viu indicada em categorias do César (tido como o Oscar francês) e o David di Donatello (dado como o Oscar italiano).
Ainda com o ator Harvey Keitel, Auster competiu no segmento Um Certo Olhar, do Festival de Cannes de 1998, dirigindo trama sobre um saxofonista de jazz afetado por acidente. Também no cinema, ele fez a narração de Kimera — Estranha sedução (fita de 2007), que trata da vida íntima do escritor Martin Frost (personagem de David Thewlis): o longa aborda a relação de um escritor com a sua produção, envolvendo ainda uma trama de sedução (de uma musa), em uma reclusão em mansão afastada. Recluso também foi Auster, que fez das raras aparições, em 2022, numa mobilização a favor de Salman Rushdie.
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