Um festival de nicho, com nomes poderosos à margem do mundo pop parece uma ideia ousada. Entretanto, o C6 Fest vem fazendo como os próprios antepassados Tim Festival Free Jazz e mostrou que há um espaço e um público interessado em música para além da superfície popular nos streamings. Com atrações interessantes, rebuscadas e únicas, o evento mostrou que dá para ir além do óbvio e que uma curadoria madura faz um festival de gente grande.
No dia de encerramento, a tônica continuou a proposta desde o primeiro momento: o novo e popular se encontrou com o já estabelecido e amado. A escolha foi por dar espaço para grandes artistas e o resultado foram momentos marcantes e histórias para contar para posteridade. Os saudosistas podem dizer que: “não se fazem festivais como antigamente”. Mas, o C6 foi, nos moldes da atualidade, um evento que não ficaria pra trás de nenhum dos pioneiros que referencia.
O último dia
Quem iniciou as atrações internacionais do dia foi a banda Squid. O grupo britânico do pós-punk é inusitado desde a formação, o vocalista também é baterista, eles se posicionam em linha no palco, sem favorecer ninguém a aparecer mais e o uso de instrumentos como chocalho e gongo. O som é tão diferente quanto todas as opções da banda, distorção, um canto gritado e as sobreposições trazem um caráter sujo e jovem que falta ao rock da atualidade.
O gênero que estava menos representado durante o festival até então era o hip-hop. O grupo Paris Texas, no entanto, supriu o vácuo deixado. O enérgico duo californiano aproveitou um grande publico que chegava para mostrar batidas inventivas em um rap acelerado. Bem distante do que tem feito sucesso no mainstream recentemente, eles estabeleceram um astral contagiante em espectadores que esperavam shows de R&B, como Daniel Caesar, que fechariam o palco.
Surpreendentes, os rappers Louie Pastel e Felix aceleraram a tarde do Parque do Ibirapuera, mesmo com a maioria dos presentes sem saber um verso do que eles estavam cantando. O público comprou a ideia do que estava sendo proposto no palco e o show foi um dos mais diferentes de todo o festival. “Paris Texas curou minha depressão”, falou um presente enquanto saia do local do show.
Um sobrenome conhecido e amado no Brasil deu as caras no evento. Noah Cyrus, irmã mais nova de Miley Cyrus, assumiu o microfone na tarde do último dia de evento. A artista de voz afinada e de um canto potente, parecia não se esforçar muito para atingir notas difíceis. Mesmo com 24 anos, Noah parecia entender a importância da entrega no palco.
A cantora segue uma linha um tanto distinta da irmã, que já investiu em diversas vertentes do pop, muito mais atmosférica, com melodias melancólicas e o foco quase que exclusivo na voz. Ela fez um show de festival, mas se voltou aos fãs, que lotavam a primeira fila da grade do palco, para cantar uma faixa que não apresentava há anos. Ela pode não ser tão popular entre os brasileiros, mas fez com que todos que a assistiam se sentissem especiais de viver aquele momento.
Em uma das mais interessantes apostas do evento, Fran e Preta Gil, Luccas Carlos, Negra Li e Lineker exaltaram um dos maiores nomes da black music brasileira: Cassiano. Liderados pelo produtor Daniel Ganjaman, os músicos fizeram uma homenagem merecida a um grande artista e compositor, responsável por grandes sucessos da música brasileira.
O show foi a atração nacional mais cheia do evento e os músicos viveram uma verdadeira comunhão com os espectadores, uma grande festa que levava o nome de Cassiano, que teve a memória honrada três anos após sua morte. “Ano passado eu vim para esse festival e eu estava em processo de cura. Esse festival me curou, deixe ele curar vocês”, disse Preta Gil logo antes de cantar Primavera, faixa de Cassiano popular na voz de Tim Maia.
Um dos momentos mais esperados do festival também era uma homenagem. A norte-americana Cat Power cantou um repertório apenas de Bob Dylan, mais especificamente o álbum ao vivo no Royal Albert Hall que a lenda do folk gravou em 1966. A cantora esbanjou carisma e, com a voz rouca característica e arranjos novos e arrojados para os clássicos, fez o dia tanto dos fãs de Dylan, quanto das pessoas que esperavam par vê-la ao vivo mais uma vez. "Obrigada, Tigresa”, brincou Cat Power com as pouca palavras que sabe falar em português.
As novas possibilidades sonoras em cima das músicas de um astro norte-americana como Dylan, mostraram aos brasileiros o quanto Cat Power é capaz de se reinventar. Contudo, também chamou atenção a longevidade da obra do músico ao qual ela fazia tributo. Uma plateia formada por não falantes de inglês, há quilômetros de distância da origem dessas músicas de repertório prestes a completar 60 anos, cantaram em alto em bom som a maioria do que a artista versava. O feito coloca não só Cat Power no papel de uma grande interprete, como também mostra o quão importante Bob Dylan é para história da música.
Com todos os integrantes e instrumentos aglomerados de forma próxima no centro do palco, a banda escocesa Young Fathers sucedeu Cat Power e parecia que faria um show intimista de palco encurtado. Porém, já nas primeiras notas, a música do grupo ocupou todo o espaço. Os artistas, que investem na mistura de gêneros e referências, fizeram um show para os espectadores sentirem mais do que para todos cantarem juntos.
Não só a música, como o impacto da presença da banda tiveram um poder de expansão que impressionou quem assistia. Espremidos entre o show de duas das atrações mais esperadas do evento, Daniel Caesar e Pavement, o Young Fathers não sentiu a responsabilidade e estreou no Brasil mostrando porque é reconhecido internacionalmente por perfomances marcantes.
Membro da velha guarda do rock alternativo e do indie, a banda Pavement exaltou a própria reunião mais uma vez no Brasil. Eles que encerraram os trabalhos em 1999, já haviam vindo ao Brasil em uma turnê de reunião no festival Planeta Terra de 2010. Agora voltaram para o segundo encontro com direito a um pouco de tudo. De solos de guitarra com o instrumento nas costas, a mensagens em português no telão, passando por uma valsa de um dos integrantes com uma mulher membro da produção no palco e, é claro, com os sucessos que fizeram deles os precursores de uma cena que hoje é dominante no rock.
A despretensão era tanta que a apresentação por vezes parecia um reencontro de amigos. Mas a realidade é que não importava para um público apaixonado que não os via há muitos anos. A maioria presente gritou cada palavra das principais canções tão aguardadas e pedidas. “‘Vocês ficam: Venham para o Brasil’, estamos aqui porra! Nós já íamos vir, mas gostamos da insistência”, bradou o guitarrista Scott Kannberg.
O nome mais aguardado do segundo dia subiu ao palco de verde e amarelo porque recentemente se tornou quase um cidadão brasileiro. Daniel Caesar finalmente subiu a um palco no país com um show solo, após todo o burburinho que gerou quando curtiu o carnaval carioca em 2023.
O cantor trouxe um show esteticamente bonito, musicalmente bem executado, mas, principalmente, carregado de uma emoção contida e contagiante. Em sintonia com o público, ele usou os espectadores como segunda voz e coro e, de forma singela entregou um show que parecia simples, mas foi pensado em cada mínimo detalhe para emocionar seja pela beleza ou pelo lirismo.
Auditório
De forma cíclica, o festival que começou no Auditório Ibirapuera encerrou no mesmo lugar. Porém, o jazz e o experimentalismo do primeiro dia tiveram um caráter de invenção ainda maior no terceiro. A começar por Chief Adjuah, artista que se intitula inventor da Stretch music, música alongada em tradução literal. Fenômeno classificado por especialistas como um dos maiores nomes do jazz da própria geração, Adjuah trouxe uma banda jovem e deu um dos espetáculos mais memoráveis do evento.
O artista é um ás do trompete, mas iniciou com o instrumento que ele mesmo criou: o arco, uma versão de uma arpa de dois lados de origem africana. As ideias disruptivas de música somadas a banda vivaz que juntou trouxeram um elemento de intensidade especial para a apresentação. O show foi destaque a absoluto em recorte de dia, mas também do festival como um todo. Tendo sido aplaudido de pé mais de uma vez antes do fim da apresentação.
O grandioso Adjuah cedeu o palco para três monstros sagrados da música negra norte-americana. Robert Glasper, Terrence Martin e Kamasi Washington, tiveram a responsabilidade de encerrar o C6 Fest de 2024. Os três juntos formam o supergrupo Dinner Party, que carrega relevância não só pelo virtuosismo do trabalho, mas pelo impacto cultural que os três nomes tem para história da música. Os artistas estão por trás de grandes álbuns, trilhas sonoras, sem contar com produtivas carreiras solo.
Toda experiência dos músicos fez a tarefa de encerrar um grande festivala parecer uma brincadeira. As improvisações e solos de sax de Washington, a habilidade com piano de Glasper e os arranjos e canto de voz distorcida de Martin literalmente levantaram o público da cadeira. Destaca-se o momento a capela do guitarrista brasileiro tocando o hino nacional seguido pela participação do compositor e letrista James Fauntleroy para cantar ao lado da banda uma música inspirada na bossa nova em uma apresentação abarrotada de história.
A impressão é que a música estava sendo inventada por três entidades profudamente conhecedoras diante dos olhos de um auditório lotado de pessoas dispostas apenas a apreciar. Não haviam três nomes mais gabaritados para encerrar o evento. Com experimentações, improvisações e um sample que fazia uma reflexão sobre o lado sentimental de tudo que foi visto no C6 até então. “A música é o coração do mundo”, dizia o trecho da música. Com essa mensagem, Dinner Party fez uma das melhores performances do ano do circuito de festivais e eventos no Brasil.
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