D ina é vaqueira no Ceará e faz aboio, um canto típico para conduzir o gado para as pastagens ou para o curral. Manoelzinho é filho de Salustiano, nasceu e cresceu no terreiro de maracatu, em Recife. Capitão Benedito é do Distrito Federal e faz parte de uma irmandade existente há mais de 200 anos e Márcio Caires foi para dentro das salas de aula de Lençóis (BA) para ensinar a cultura popular diretamente para as crianças. Eles e outros mestres de todas as regiões brasileiras participam, a partir de hoje e até domingo, do evento Mestres do Brasil — I Encontro de Mestras e Mestres das Culturas Populares, que ocupa o Eixo Cultural Ibero-americano (antiga Funarte). A abertura será hoje, às 20h, no Espaço Cultural Renato Russo (508 Sul), com uma apresentação do Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro com o convidado Mestre João Paulo (PE).
O encontro é aberto ao público, tem entrada franca e está organizado em torno de uma programação que inclui rodas de conversas, debates, oficinas e apresentações de 15 mestres de cultura popular atuantes de Norte a Sul do Brasil. "A gente trouxe mestres de todas as regiões, muitos com mais de 70 anos, com décadas de trajetória nessas brincadeiras populares e nas culturas tradicionais", avisa Anderson Formiga, idealizador do evento. "O que a gente tentou fazer foi mudar um pouco o foco da coisa artística, o enfoque na parte musical ou nas outras áreas e linguagens artísticas e dar um enfoque para a educação: como esses mestres vêm trabalhando o ensino durante essas décadas."
A ideia é focar as rodas de conversa, sobretudo, na maneira como a interação com a comunidade é importante para a preservação dos saberes populares. O aprendizado técnico — como tocar um tambor ou aprender a executar determinado passo de frevo — é essencial, mas não se chega a esse ponto se não houver antes o aprendizado sobre a vivência na comunidade. "É preciso escutar os mais velhos, escutar os mais novos e, ao mesmo tempo, aprender em grupo. Os mestres são quem guiam e transformam. Você não faz nada de cultura popular sozinho, os fazeres em grupo são sempre aprendidos na comunidade e durante as festas, os bastidores, as preparações, os ensaios", explica Formiga, que teve o primeiro contato com a cultura popular por meio da capoeira e, a partir daí, embrenhou-se cada vez mais graças à convivência com a comunidade. "A gente quer olhar para essas poéticas desses mestres e ver como é o processo. Quando a gente chega e vê a apresentação, a gente vê o bem cultural ou o produto acabado. Mas aqui nos interessa mais olhar para o processo, não só do ponto de vista da estética, da poesia, mas do ponto de vista da comunidade."
Manoelzinho Salustiano, 54 anos, é mestre de Maracatu Rural e dá aulas na Casa da Rabeca, em Olinda. Especialista em bordado de estandarte e filho do famoso Salustiano, tocador de rabeca e fundador do maracatu rural Piaba de Ouro, que inspirou movimentos como o Manguebeat, Manoelzinho quer aproveitar o encontro para falar sobre a importância da escuta no aprendizado dos saberes populares. "Tenho pensado muito nessa coisa da troca de saberes, quero falar para as pessoas sobre nossa forma de ensinar nos terreiros, sobre esse repasse oral, essa disciplina de respeitar os mais velhos", avisa. "A gente não aprende no terreiro lendo livro, aprende escutando. Tem que ter essa calma de prestar atenção para aprender. Daí a gente aprende as histórias e a arte."
Além de Seu Estrelo e o Fuá de Terreiro, também participam do encontro alguns mestres de Brasília, como Chico Simões, Martinha de Coco, Fernanda Machado, filha do mestre Bimba, que sistematizou a capoeira regional, e Tamá Freire, filha do seu Teodoro. Para Chico, fundador do Mamulengo presepada, o encontro é importante para propor direções para políticas públicas para a área e para pensar em formas de transmissão sólidas diante das novas tecnologias. "Nas tradições das culturas populares, o aprendizado se dava pela convivência durante longo tempo", lembra Chico. "Mas, recentemente, com o advento dos meios de comunicação, internet e da urbanização das cidades no sentido de que mudaram as relações sociais, essa transmissão pela oralidade, pela convivência está completamente inviável, é raro uma situação em que ainda se mantém esse tipo de transmissão do conhecimento."
O desafio agora, Chico aponta, é manter as tradições vivas sem deixar de lado a dinâmica de repassar os conhecimentos. E não deixar que se transformem em folclore. "A gente corre o risco de folclorizar", repara o bonequeiro. "Se pegarmos as tradições e mantermos como são, se ficarmos repetindo, vamos folclorizar e isso significa que estamos engessando, tirando a porosidade que essas manifestações têm para poder repetir todo ano igual. Isso é folclore. Cultura popular é outra coisa, é dinâmica, viva, se transforma, não se repete. Ela vai se alterando durante um tempo. Nosso desafio é como manter a estrutura fundamental de uma tradição sem engessá-la, sem torná-la objeto de museu ou curiosidade."
Mestres do Brasil - I Encontro de Mestras e Mestres das Culturas Populares
Com participação de Mestra Janja (BA), Mestre Paulão Kikongo (RJ), Marcia Rollemberg (MinC), Cleber Santos Vieira (MEC), Claudio Abrantes (Secec-DF), Leandro Grass (Iphan), Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (DF), Mestre João Paulo (PE) contramestre Felipe Guima (DF). Abertura hoje, às 20h, no Espaço Cultural Renato Russo (508 Sul). Programação segue até domingo no Eixo Cultural Ibero-americano (antiga Funarte). Entrada: Franca
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