Cinema

'Extremamente atual', diz diretor de 'A paixão segundo G.H'; veja a entrevista

O aclamado texto de Clarice Lispector A paixão segundo G.H.. ganha versão cinematográfica, dirigida por Luiz Fernando Carvalho

O encontro entre uma inspiradora tela em branco, um livro potente na variedade de palavras reentrantes, e ainda a impactante plasticidade de uma musa atriz inspiradora: Maria Fernanda Cândido — tudo isso moveu o diretor Luiz Fernando Carvalho na adaptação para a telona de um dos clássicos de Clarice Lispector: A paixão segundo G.H. "Não parto de nenhum pressuposto cinematográfico; eu parto de um ritual prévio que é simplesmente a presença de uma tela em branco", conta o diretor, em entrevista ao Correio. "Olha (interpretar a protagonista) foi uma alegria difícil, como diria Clarice, mas chama-se alegria e sinto-me muito agraciada por ter sido escolhida pelo diretor para este processo fascinante", observa a atriz Maria Fernanda Cândido.

"Viver me tira o sono", confirma no texto a personagem G.H. que espera, como glória, chegar ao inumano. Pouco a pouco, a humildade (que, no olhar de Clarice, "é a realidade vista pelo mínimo bom-senso") transforma a escultora que traz gestos grandes como o de dar a mão a quem precisa. Diante do enfrentamento de um orgânico mundo fragmentado, nunca habitado pelo rosto masculino, G.H. lida até mesmo as notas do Hino à Bandeira Nacional.

"O filme e o livro são extremamente atuais. O filme abre as portas da nossa percepção para essa atualidade absoluta do livro. Acho que esse livro poderia ter sido escrito ontem, por todas as questões tratadas. São discussões atuais, antes de G.H. se defrontar com a própria questão da mulher e do ser feminino", detecta Maria Fernanda. Num viés metafórico, G.H. fica absorta, ao deparar com uma barata, no texto escrito há 60 anos, com a trama golpista dos anos 60 em curso. "G.H. vai esbarrar na questão da luta de classes , na questão da racialidade e nessa arquitetura de um apartamento que traduz muito da nossa arquitetura social", pontua Maria Fernanda.

"Sou aquilo que de mim os outros veem", registra o texto sobre a mulher, enredada em eriçados fios de razão e que preenche muitos dos poros de alegria, assumindo até mesmo uma leve vulgaridade. "G.H. vivia dentro de um espelho, ela era aquilo que os outros viam dela, era refém do olhar alheio; porém ela era uma refém voluntária desse cativeiro. Como perguntado (como eu reajo) à condição... Eu, Maria Fernanda, eu entendo que não há nada a ser feito em relação ao olhar alheio. É algo que nós não controlamos. Porém a nossa relação com esse olhar, essa, sim, está em nossas mãos", completa a atriz. 

Entrevista // Luiz Fernando Carvalho, diretor

Clarice Lispector indica o romance para as almas já formadas. Para qual tipo de espectador recomenda teu filme?

Recomendo aos desarmados. E quem seriam eles? Aquelas pessoas que têm uma alma formada e conseguem chegar a um ponto de se verem desarmadas ou, mesmo, já nascem desarmadas, sem ligação incondicional a um estatuto acadêmico, e a nenhum "grande" saber — já que, na verdade, estão mais plugadas com o livrão da vida, com menos teorias. Nisso, inclusive, brota uma diferença entre esses dois autores que são contemporâneos e completam o sentido da pergunta: entre Guimarães Rosa e a grande Clarice Lispector. Um tematiza um mundo masculino, de guerras; e o outro traz uma crise fraturada e do feminino. Guimarães traz Riobaldo (em Grande sertão: veredas) dizendo: "Se Deus vier, que venha armado"; e Clarice aponta: se Deus vier, que venha desarmado.

No momento tão colapsado intriga a identificação de uma coisa: trata-se de livro de 1964, e no filme, saltam as cores verde-amarela, além de vermos uma bandeira do Brasil na porta do famoso armário (da barata)... Clarice fala do meter da "pata humana" sobre a delicadeza: isso é emblemático no filme?

Trata-se de um texto escrito em 1964, em plena ditadura militar, mas com uma  crítica veemente a todo esse sistema de poder que também, por sua vez, é um sistema constituído por homens e para e pelos homens. Dentro desse sistema, há a questão bélica do poder. O dado das cores verde-amarela foi uma enorme coincidência: houve uma amiga minha que disse que foi a mão de Clarice que colocou tudo ali. Quando fui escolher a locação, aquela bandeira do Brasil estava presa lá — já era um jornal velho, preso na porta do quarto da doméstica da locação que eu estava visitando ali. O apartamento não estava em uso, e aquela bandeira talvez fosse da última Copa do mundo. Algo do tipo. A cenógrafa imediatamente me perguntou: 'tiro isso daí?'. Eu disse: ' Não toca nisso'.

Qual a razão?

Acho que todas as coordenadas e questões que serão refletidas, desconstruídas, apresentadas ali dentro daquele espaço do quarto. Representam as injustiças todas do nosso país, né? A própria barata do texto não é uma metáfora apenas, ela é um receptáculo. São muitas cores na barata e ela recebe várias leituras. E a primeira leitura, muito fundamental, é uma leitura sociológica que dá conta da posição da elite versus os precarizados — a mulher negra, enfim todos os periféricos do mundo, sejam eles de categoria de gênero, de raça e de religião. Olha o que está acontecendo no mundo agora! Olha a Faixa de Gaza, enfim, pense aí em Brasília: olha como temos que avançar e resistir para que não haja um retrocesso. Veja o que está acontecendo na Argentina. Olha o que está sendo apontado nos próprios Estados Unidos!

O que pesa no cerne do livro?

A questão sociológica é muito importante. Sempre esteve colocada de forma muito sutil, nas linhas e nas entrelinhas. Talvez tenha sido este o ponto no qual Clarice entendeu que a literatura dela deveria lidar naquela época. Mas, hoje, eu estou filmando com a mão da história — a mão da história com H maiúsculo está me ajudando a segurar a câmera. Nossa função é a de reescrevermos a história. O que Janair, a personagem da doméstica negra, fez foi exatamente inscrever-se na história, por meio de um desenho escrito a carvão. É uma inscrição ancestral que propõe uma nova epistemologia, um novo pensamento do mundo, uma nova encruzilhada para o mundo, com novas possibilidades, nova perspectiva. Ela passa a ter uma ação detonadora de toda a desconstrução de G.H.. O que, então, este monólogo é? Qual foi a dica de Janair?! Ela ensinou a revolução para G.H., revolução — somos nós mesmos que precisamos reevoluir, enquanto o gênero, inclusive.

Em certo ponto, determina que "ser homem tem sido um constrangimento". Quais papéis tiveram os homens da produção: como ficou a masculinidade e ainda o desprendimento, com a liberdade de reescrever um texto tão denso e tão único e extremamente nada linear?

Já disseram por aí que eu tive que usar, que acessar meu lado feminino para me aproximar desse relato. Mas ao fazer o filme, eu fui muito além disso. Evidente que o mundo masculino impõe  limites, ele existe. Mas temos que ir além deles. Você tem que ir além então: talvez eu tenha ido além do que seja além do próprio homem.

A barata é fotogênica? Como fizeram para que não ficasse uma coisa grotesca? E como emendaram o outro extremo, o da beleza insuperável da atriz, que parece reagir com despojamento?

É perfeita essa colocação, já que, uma das coordenadas do romance diz do imundo do mundo. E o que significa o imundo? São todos aqueles excluídos, como princípio, a barata seria imunda. Fiz um deslocamento estético mesmo: a barata começa imunda e ela vai se tornando uma joia rara, vai se tornando um caramelo, isso a ponto de despertar o desejo de ser comida. Isso no sentido de se aproximar de uma substância, e ingerir essa substância, antropofagicamente e se tornar aquela coisa que você ingeriu. A Maria Fernanda (atriz) também faz esse movimento inverso: ela começa como uma figura quase veneziana, viscontiniana — tem uma beleza clássica absurda, e vai se desconstruindo, seus cabelos vão virando antenas, vai se desglamourizando, se descompondo enquanto beleza clássica. E vai acessando o inumano dentro da pessoa.

E em que resulta?

Este deslocamento de algo que tem uma premissa de ser imundo quase se torna uma bala de caramelo. Da beleza clássica se questiona a ideia da beleza. Viscoti dizia: ao nos depararmos com a beleza, estamos inevitavelmente diante da morte. Então no movimento que me propus a fazer com a beleza da Maria Fernanda, e ao nos aproximarmos do imundo, descobriremos que o imundo não é imundo e ele não o sendo refaz uma ordem de moralidade constituída. Esse sistema que aí está nos oprimindo, até hoje, com suas leis, suas palavras, ele desmorona.

Clarice fala que a realidade é delicada, e bota muito peso na irrealidade e na imaginação; nisso, chegamos à metalinguagem empregada no filme. O texto ainda registra o sacrifício do caminho junto ao artificial para se chegar ao essencial.... Qual apropriação você fez da realidade?

O real é a matéria-prima e o cinema é a linguagem em que me aproximo dela, da matéria que é a vida. Mas, ao me aproximar, assim como Clarice, eu estou sempre voltando com as mãos vazias; não trago nenhum resultado — não parto dessa ideia de êxito. Nada disso me responde totalmente à aproximação dessa matéria-prima chamada realidade. Retornando, sempre, com as mãos vazias mas, como ela mesma diz, volto com o indizível o invisível. São estes elementos que me interessam.

Veja entrevista com o diretor


 

 

Mais Lidas

Paris Filmes/Divulgacao - A paixão segundo G.H.: emancipação feminina
Paris Filmes/Divulgacao - A barata estampa a telona: relação com a matéria
CB/ DA Press - Confira a entrevista com o diretor Luiz Fernando Carvalho