Geralmente, ao serem escalados para um remake, atores e atrizes costumam evitar as referências impressas pelos colegas que defenderam antes aqueles personagens. Além de respeitar a marca deixada, a maioria deseja que a sua construção venha do zero. Esse, porém, não foi o caso de Ana Cecília Costa, que recebeu, como ela própria declara, "a confiança de ter sido escalada" para viver a Morena em Renascer (2024) e fez questão de honrar a ancestralidade da personagem, reverenciando a entrega da atriz Regina Maria Dourado, falecida em 2012. "Senti que, antes de qualquer passo, deveria honrar a memória dela para o grande público e, sobretudo, para esta nova geração que não a viu atuando. De uma maneira geral, o nosso país tem uma memória muito curta e não somo educados a valorizar os nossos artistas", afirmou a atriz, ao Correio.
Baiana como a personagem, Ana Cecília também buscou na própria origem parte da inspiração para a composição. "A minha Morena também traz muito da minha memória e vivência com a gente de roça do interior da Bahia", explicou. Em 2022, muito antes de receber o convite para a atual novela, a atriz visitou o irmão, que vive na zona rural baiana.
"Acompanhei o seu trabalho na roça de cacau, sem saber que estaria, agora, mergulhada em uma história que mostra esse universo", contou a escorpiana de 53 anos, que também pode ser vista em Paraíso tropical (2007) — sua outra presença no horário nobre, exibida no Vale a pena ver de novo —, como a prostituta baiana Walderez.
ENTREVISTA | ANA CECÍLIA COSTA
Como tem sido essa vivência e a repercussão de Renascer?
A novela tem me proporcionado uma experiência muito especial e importante de participar de um projeto na televisão que se volta para o Brasil, para a Bahia profunda, retratando a história de nossa gente, e isso me interessa muito como artista e cidadã brasileira. Como sempre digo, a maior parte da população do nosso país, infelizmente, não tem oportunidade de frequentar cinema e teatro, mas consome televisão. Por isso, quando atuo em novela, tenho a consciência de que estou falando para muitos Brasis e, neste caso, em uma obra-prima da nossa teledramaturgia escrita originalmente por Benedito Ruy Barbosa e atualizada por Bruno Luperi, que tem trazido reflexões essenciais para o atual momento do nosso país, como o respeito à diversidade religiosa. Agradeço a confiança de ter sido escalada para compor um elenco compacto, escolhido a dedo e que, junto de uma equipe artística e técnica primorosa, está dedicada a levar um produto audiovisual de muita qualidade estética ao espectador. Nosso set de gravação é leve e respeitoso, tenho um prazer imenso de jogar com meus colegas de cena. Somos felizes juntos, e isso se percebe no ar. A repercussão da novela, nas redes sociais e nas ruas, tem sido muito positiva e afetuosa, nossa história fala ao coração das pessoas.
Você já declarou que Morena traz muito da sua memória com a gente de roça do interior da Bahia. Como é essa conexão?
Nasci em Jequié (BA), onde vivi minha primeira infância. Aos 8 anos, mudei para Salvador, de onde saí aos 19 anos. Fui uma menina que montava cavalo, bebeu leite de vaca fresco, comeu fruta no pé, tomou banho de rio... Mudei de Salvador para o Sudeste há muitos anos e, por coincidência, no fim de 2022, visitei meu irmão, Marco Antônio, que vive no interior da Bahia, na zona rural. Acompanhei o seu trabalho na roça de cacau, sem saber que estaria, agora, mergulhada em uma história que mostra esse universo. A minha Morena também traz muito da minha memória e vivência com a gente de roça do interior da Bahia. Conheço essa linguagem e essa voz.
Você demonstra em cena e nas entrevistas um cuidado em honrar a ancestralidade da Morena, em relação à memória da saudosa Regina Maria Dourado...
Sim, desde que recebi o convite da direção para interpretar Morena na nova versão de Renascer, personagem que foi maravilhosamente defendida por Regina Dourado, senti que, antes de qualquer passo, deveria honrar a memória dela (falecida em 2012) para o grande público e, sobretudo, para esta nova geração que não a viu atuando. De uma maneira geral, o nosso país tem uma memória muito curta e não somos educados a valorizar os nossos artistas. Fiz questão de assistir e me inspirar na Morena de Regina, porque ela fez uma composição muito acertada — uma mulher carismática, solar, sensual, espontânea, real — e eu segui sua trilha de criação. Claro, a novela foi atualizada e eu imprimi minha personalidade como atriz à personagem, mas quis deixar um rastro de Regina em mim. Como atriz baiana como ela, me cabe também agradecer os caminhos que ela abriu à nossa frente, então é uma homenagem, mesmo. Também gostaria de pontuar o trabalho de Uiliana Lima, como a Morena jovem, na primeira fase de Renascer. Ela abriu os caminhos da personagem de uma forma brilhante, me entregou uma Morena bela e forte, me emocionei muito com suas cenas.
O remake traz uma releitura dessa obra que se passa na Bahia, agora com mais atrizes e atores nordestinos e negros em destaque. Qual a importância, para você, desse movimento de se colocar a representatividade e a diversidade nas obras da tevê aberta?
Isso já deveria estar acontecendo há muito tempo. Somos um país plural e com talentos extraordinários de Norte a Sul, que precisavam ter espaço na teledramaturgia brasileira. E isso aconteceu de forma acertada na última novela que fiz, Amor perfeito (de Duca Rachid, Julio Fisher e Elisio Lopes, com direção artística de André Câmara). A escalação de Renascer, para mim, é um dos grandes trunfos da novela, com um elenco de talentos genuínos e extraordinários que estão imprimindo na tela a cara do Brasil diverso e real. Isso é valioso e bonito de ver.
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Morena era prostituta, assim como a Walderez que você viveu em Paraíso tropical, que está sendo reprisada. Ambas são da Bahia e são as suas duas experiências no horário nobre. O que você pode comentar sobre essa coincidência?
Realmente, foi uma coincidência. Em comum, essas personagens são baianas e trabalharam como prostitutas. Em Paraíso tropical (novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, com direção artística de Dennis Carvalho), eu interpretava Walderez, que trabalhava em um bordel de luxo e era o braço direito de Amélia (Susana Vieira). Essa personagem foi escrita para ser uma participação na primeira fase e, de certa forma, era a "puta bom caráter" que fazia oposição a Bebel, que era mais malandra. Já com Morena, eu entro na segunda fase da personagem, em sua maturidade, quando ela já está casada e vive como dona de casa. Mas, mesmo não estando na lida da prostituição, quis deixar claro na composição da personagem (corpo, caracterização, figurino) que essa mulher carrega sua vivência como puta, conhece as dores e as delícias daquela vida. Acho que a grande diferença, para além da faixa etária das duas, é que Morena é uma personagem da terra, rural. E Walderez uma mulher urbana, litorânea. São sutilezas que diferenciam, por exemplo, o sotaque delas.
Morena é uma mulher essencialmente maternal, assim como as mães que você viveu em Amor perfeito e Órfãos da terra. Em que lugar a maternidade se manifesta na Ana Cecília?
Não sou mãe e me sinto muito bem resolvida com isso. Eu me reconheço como uma mulher amorosa e cuidadosa com gente e bichos.
Tanto Morena quanto Verônica, de Amor perfeito, se mostram mulheres fortes, independentes e empoderadas. Essa bandeira também é algo que te atravessa na prática?
A minha bandeira é a liberdade e, nesse sentido, me vejo em consonância com essas duas personagens que, de certa forma, agem contra a corrente. Verônica, por ter sido uma mulher à frente do seu tempo, mãe solo, amante do prefeito (Paulo Betti), que na maturidade rompe com essa relação abusiva, deixa o emprego de secretária, abre seu próprio negócio e inicia uma nova relação de amor e parceria com Dr. Erico (Carmo Dalla Vechia). Já Morena é uma mulher forjada na terra e no sexo, muito esperta e intuitiva, sem preconceito algum, agregadora, que acolhe e cuida de toda família. No meu caso, a busca pela liberdade acontece desde o momento em que escolho seguir a profissão de atriz, mesmo contra a vontade dos meus pais.
E a Ana Cecília acadêmica, que fez mestrado em comunicação e dá aulas de interpretação? Como aconteceu?
A decisão de me formar bacharel em cinema e fazer mestrado em comunicação/semiótica se deu porque vivo em um país onde sobreviver como artista é muito desafiador e não depende apenas do talento e da capacidade profissional. Fiz essa formação porque gosto de estudar/pesquisar e para me qualificar a dar aulas, o que seria uma alternativa profissional compatível com minha personalidade. Entendo que a formação acadêmica também está alinhada com minha busca pela liberdade, ou seja, se em algum momento o trabalho como atriz virar um sacrifício ou uma violência, posso dizer não e tenho uma alternativa de sobrevivência.
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