Em 2015, Raphael Montes falou a José Eduardo Belmonte sobre um argumento que poderia render um livro ou um filme. Uma família perfeita, moradora de um típico condomínio de classe média alta brasileira, começa a ver desmoronar o mundo de aparências meticulosamente construído. A ideia cresceu, escritor e cineasta passaram a trabalhar em dupla e o projeto tomou corpo até se transformar no longa Uma família feliz, que chega aos cinemas nesta quinta estrelado por Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini, e no livro de mesmo nome, que sai pela Companhia das Letras.
Foi, como explica Belmonte, um processo bastante inusitado. "No início, não tinha nem filme nem livro", conta. "O livro foi escrito depois, durante a filmagem. O Raphael começou a pegar as experiências e as sensações frescas da filmagem e foi criando o livro com um narrador em primeira pessoa." O romance no qual Eva é casada com o bem-sucedido Vicente, de quem aceitou as gêmeas, Sara e Ângela, como filhas, nasceu como o roteiro que Raphael Montes assina para o filme. Na história contada na tela, Eva logo se torna mãe de um bebê aguardado por Vicente, mas o mundo perfeito da família começa a se desestruturar quando as crianças aparecem machucadas.
Fragilizada, à beira de uma depressão pós-parto, esgotada ao tentar equilibrar afazeres domésticos, trabalho e as crianças, Eva começa a desconfiar de si mesma e o thriller toma, aos poucos, proporções dantescas. Acusada e desacreditada, a personagem se equilibra em uma frágil linha enquanto tenta desvendar o que realmente se passa com a família.
Quando imaginou a história, Raphael Montes estava interessado em focar questões da maternidade, mas também queria explorar uma história na qual as aparências enganam bastante. "Uma das primeiras coisas que eu tinha quando contei para o Belmonte era o título, Uma família feliz. Eu queria falar sobre essa família idealizada do comercial de margarina num condomínio perfeito, cercada de muros, com segurança, câmera, em que o perigo e o mal estão lá fora e, dentro, reina o bem-estar, o conforto e a segurança", conta. "Essa vida idealizada nesse mundo de aparência me interessou. Ao mesmo tempo, havia o caso de uma amiga que teve uma depressão pós-parto. Fui conversar com outras amigas e todas tinham uma questão com a maternidade, seja porque sentem pressões para ser mães perfeitas, seja porque não querem ser mães e têm que ficar se justificando."
A questão do cancelamento também intrigava Belmonte. "Eu me interessei muito na hora que Raphael me contou por causa do julgamento sumário da personagem. Em 2015, era uma época propícia para pensar sobre esse tipo de história", conta o diretor, que acredita ter mantido o tom político do filme anterior, O pastor e o guerrilheiro, lançado em 2022. "Acho que tudo é política. O que me motivou foi o aspecto político da história, você entender o quanto de perversidade existe por trás dessa necessidade do mundo das aparências que a cultura autoritária coloca", diz. Quando imaginou o papel de Eva, Belmonte pensou imediatamente em Grazi Massafera, não apenas pela beleza física, mas pelo carisma. O diretor precisava de alguém que não provocasse ódio imediato, alguém capaz de engajar empatia no espectador.
De certa forma, Belmonte também buscou inspiração na Brasília dos anos 1970 e 1980, onde cresceu, para construir o mundo de aparências de Eva e Vicente. Para o diretor, naqueles primeiros anos, a capital planejada estava imersa num ambiente que aparentava muita artificialidade. "Eu trouxe muito uma experiência de Brasília para esse filme. Só quem cresceu na cidade nos anos 1970 e 1980 sabe. Aquilo era bonito, mas era estranho, era incômodo. Parece que alguma coisa estava acontecendo, mas não estava acontecendo nada", lembra o cineasta.
No set de filmagem, a parceria entre Belmonte e Montes foi um pouco além do roteiro. O escritor pediu para ser considerado como assistente e, dos improvisos que marcam o método de ensaios e registros de Belmonte, ele pescou material para o livro. Foi quando as filmagens já estavam avançadas que o escritor carioca, roteirista de séries como Bom dia Verônica e Beleza fatal, decidiu colocar tudo no papel. "Tudo foi ganhando muita vida depois do set de filmagem, eu estava do lado de lá o tempo inteiro, olhando, aprendendo e vendo decisões e escolhas dos atores, às vezes o tom de fazer a cena.Um belo dia, eu cheguei no hotel e decidi começar a escrever. Só comecei a escrever o livro porque encontrei o que essa história tinha de literário", explica.
Entrevista//José Eduardo Belmonte e Raphael Montes
Como vocês sabiam que essa história seria primeiro um filme? E como surgiu a parceria?
Raphael — Às vezes minhas ideias nascem como ideias e aí, a depender se é um livro, se é um filme, eu uso essas ferramentas que o cinema me traz ou que a literatura me traz, para contar a história. Mas nasce, primeiro, como uma história. Contei para o Belmonte e ele gostou, então a ideia virou nossa. E aí eu passei a escrever, fazer os tratamentos de roteiro. Quando chegou a hora de filmar, pedi ao Zé para ser diretor assistente, porque cada vez mais me vejo como um contador de histórias, tanto no cinema quanto na literatura, na televisão, me interessa contar histórias. Pedi ao Zé para estar com ele, como um braço direito. Essa vontade começou na prévia, em um dos ensaios. O Zé tem um método muito legal de ensaio e a gente tem dois atores muito grandes que são Grazi e Gianni, Gostei muito de ouvir e aprender como buscar um registro diferente desse ao qual a gente já está acostumado.
Belmonte — Esse processo é meio inusitado. Na verdade, não tinha nem filme. O livro foi escrito depois, durante a filmagem, porque o Rafael começou a pegar as experiências e as sensações que estavam frescas da filmagem e foi criando a história. O Raphael falou que interessava mais a questão da maternidade, do mal-estar na maternidade. Demoramos muito a filmar, mas quando a gente descobriu o grande tema do filme, eu me senti bastante confortável para entrar na história. O filme é sobre um mundo das aparências, sobre um universo que seria a norma e sobre o que estava por trás dessa norma.
Rafael, você começa o livro com uma cena impactante. Por quê?
Raphael — Faz parte da história que eu queria contar. Era uma história que começa de uma maneira muito forte, que começava com essa imagem muito forte e ia para alguns meses antes e, como uma espécie de bomba relógio, você acompanha. No livro é assim, no filme acabou não sendo. Você acompanha essa família idealizada e coisas estranhas vão acontecendo e daí você entende como chega nesse final que ressignifica o início. O final é exatamente igual ao começo. Isso me interessava pela experiência de ler de novo uma coisa ou assistir de novo a uma cena que você já viu e entender um novo sentido, uma nova perspectiva.
Sobre o tom político do filme, que traz a história de uma mulher cancelada antes mesmo que se esclareça a história. Por que trazer a história para essa esfera?
Raphael — É uma coisa que acho interessante essa questão do filme ser político. Eu realmente acredito que o gênero é uma das melhores maneiras de você fazer política, porque o gênero tem as suas chaves clássicas e acessa o público pela emoção. Ao falar de violência, ao contar a história você também reflete sobre a sociedade, você mostra como ela é julgada, sem chance de defesa, você mostra, de maneira muito sutil, as pressões que a mulher sofre na maternidade em todos os sentidos. Todas as questões de reflexão e provocação estão no filme, mas através das chaves de gênero.
Belmonte — Em 2014, eu estava fazendo uma série da HBO e esses movimentos todos que a gente começou a ver não estavam ainda acontecendo, estavam só começando. Eu lembro que eu falei com Alex Gavassi, lá no Uruguai: ‘Tá surgindo uma onda meio fascista no Brasil que está me incomodando. Você não está sentindo?”. Ficou aquele incômodo e depois a gente viu como foi surgindo. De repente veio uma certa distopia, você estava dentro de um cenário, de uma distopia. Foi bastante perturbador para mim. E eu acho que para muita gente também. E acho que todo artista tem que tentar falar disso. No caso, me interessou falar disso, só que em outro lugar, num universo mais sensorial, um pouco de thriller, um filme popular, de alguma forma, um filme para grande plateia usando um gênero usado no suspense. O crime não é um sintoma social, mas está muito ligado à sociedade.
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