O cineasta André Luiz Oliveira ficou fascinado quando conheceu Lorenzo Barreto. Aos 4 anos, o menino havia sido diagnosticado com transtorno do espectro autista e chegava ao setting da musicoterapeuta Clarisse Prestes para um tratamento que duraria anos. "Foi uma empatia tão grande", lembra o cineasta. "Quando olhei para ele, era uma criança com uma luminosidade, ele tinha uma coisa com a música, e tem até hoje, que aquilo me capturou definitivamente. Pela memória musical, a forma com que ele abriu os olhos, a forma como se mobilizava quando a gente fazia qualquer som."
André Luiz passou a filmar as sessões de musicoterapia até Lorenzo completar 18 anos, mas não tinha ideia de que transformaria o material no filme Meu amigo Lorenzo, que entra em cartaz no circuito comercial e tem lançamento e pré-estreia hoje, considerado o Dia Mundial da Conscientização sobre o Autismo. O setting de musicoterapia é o local no qual as sessões ocorrem. É uma sala da música, com enorme variedade de instrumentos musicais utilizados pela terapeuta para trabalhar com a criança.
No caso de Clarisse, que é companheira de André Luiz, o setting fica localizado na própria chácara na qual mora o casal. Esse detalhe facilitou a presença constante do cineasta. "Talvez se fosse mais longe, seria mais difícil, mas era a 20 metros do meu estúdio. Peguei a câmera e fui", conta André Luiz. "Tudo pode virar alguma coisa, mas estava longe de um longa metragem. Muito também pela distância no tempo e pela questão da técnica mesmo. Até depois de ter filmado tanto, a gente tinha dúvidas se podia virar um 4K para ir para a tela de cinema. Era uma coisa do registro. E depois do primeiro dia, vi que me interessava muitíssimo, tudo era novidade, o jeito que ele falava, o jeito que ele corria." O material também serviu a Clarisse na pesquisa e no estudo sobre a utilização da musicoterapia no tratamento de crianças com transtorno do espectro autista.
Quando Clarisse começou os atendimentos a Lorenzo, pouco se falava do uso da musicoterapia nesse campo. "Começamos a pesquisar, não existia nada", lembra André Luiz. "E hoje as pessoas só falam em terapia comportamental como se fosse a única forma de estar com essas crianças só porque criaram esse slogan de comprovação científica. E não é verdade", diz o cineasta, que encara o filme também como um documento que comprova a enorme capacidade do método. André Luiz, inclusive, está surpreso com a repercussão que Meu amigo Lorenzo tem tido. "O filme já entrou no circuito e a gente está aqui pensando que milagre foi esse", conta. "Meus outros filmes, premiados, não foram para o cinema, não chegaram aos cinemas. Meu amigo Lorenzo vai entrar em dois cinemas no circuito. É uma intervenção milagrosa do destino no filme."
Para Clarisse, o contato com Lorenzo foi também um aprendizado. "Tudo que eu poderia ter de teoria sobre empatia, estar junto com o outro sem expectativas, tratar de compreender as necessidades das pessoas, sendo orientada pelo paciente, com o Lorenzo fui aprendendo isso", conta a musicoterapeuta, cuja formação inicial é em educação musical. "Eu vi que a musicoterapia é muito diferente, o objetivo não é pedagógico e sim terapêutico, de melhorar a qualidade de vida de quem está com a gente."
O documentário tem duas etapas que dividem o filme e a própria trajetória de Lorenzo. Na primeira parte, Clarisse conduz as sessões ao mesmo tempo que passa a entender as necessidades da criança. A descoberta da música por parte de Lorenzo e a maneira como responde e interage são verdadeiras conquistas para o garoto. As imagens são captadas pela câmera com emoção e delicadeza. André Luiz não hesita em se aproximar de Lorenzo, em levar a câmera até o rosto do menino para não deixar escapar a impressão registrada nos olhos e na expressão da criança.
Na segunda parte, com Lorenzo já adentrando a adolescência, André Luiz assume o protagonismo nas sessões. O laço criado entre os dois fez Clarisse se dar conta de que, de agora em diante, era por meio da interação com André Luiz, ele mesmo músico e compositor, que as habilidades e necessidades musicais de Lorenzo poderiam seguir adiante. "O violão que eu pegava foi quase uma intromissão, um desejo de dialogar com ele, mas eu não tinha a menor intenção de substituir e fazer musicoterapia. Sempre estive ligado à questão da psique, da psicoterapia, tanto que Louco por cinema é uma brincadeira com tudo isso", garante o cineasta. O diálogo musical com Lorenzo floresceu e deu frutos. "Eu podia exercer minha linguagem e a música, o ambiente musical em que eu estava inserido era perfeito para ficar à vontade. Ao longo do tempo, comecei a me dar conta da riqueza, do tesouro que era esse material. Isso, ninguém tem", conta.
Entrevista//
O que te fascinou em Lorenzo?
Me chamava atenção demais como ele era capturado pelo som. E comecei a ficar interessado nos atendimentos da Clarisse. Tudo que aconteceu depois foi decorrência do que aprendi olhando os atendimentos dela, era uma coisa tão natural, tão verdadeira, não tinha um protocolo, um saber intrínseco naquilo, tudo era de verdade, o gestual dela, a forma de estar junto, aquilo tudo me encantava de uma forma muito inteira e orgânica. E depois, quando a gente assistia, comecei a me interessar em colocar a câmera mais próxima.
Como você se deu conta de que tinha um filme?
Para o TCC de Clarisse fizemos um vídeo curto de Lorenzo, com dois episódios. Foi a primeira vez que a gente montou uma coisa e ficamos pasmos com a possibilidade de fazer aquilo com uma criança com aquela musicalidade e já computando os ganhos no vídeo. Passamos num congresso no Rio, falamos com os pais da possibilidade de colocar no YouTube para ter um feedback de pessoas que precisam ter conhecimento dessa forma de lidar. Depois que colocamos no YouTube, foram muitas visualizações, as pessoas procurando e Clarisse começou um trabalho mais consistente com mais crianças.
O que você acha que chamou a atenção?
O afeto na frente do protocolo. Estamos tendo muito apoio de psicanalistas que estavam jogados por causa desse marketing das terapias que tomaram o mercado. Dizia se que (a musicoterapia) não funcionava para crianças com transtorno do espectro autista. Mas existem trabalhos incríveis com psicanálise e autismo. Autismo virou um negócio e a gente está aqui com o filme, sem procurar polêmica, mas mostrando o que aconteceu dentro de um setting com essa forma de a Clarisse trabalhar. É uma evidência. Saiu um pouco da caixinha.
A relação de Lorenzo com a música é realmente surpreendente…
A capacidade de aprender a sonoridade é uma coisa que não é normal. Eu reluto em afirmar que ele tem ouvido absoluto, como dizem, porque isso não é notável, o negócio dele é cantar, é a memória musical. Ele tem uma inserção do eu dele, ele está inserido no que a gente chama de campo harmônico. Não posso achar que seja coincidência, ele tem um ouvido sempre no radar do campo harmônico do que eu estou fazendo, do que Clarisse está fazendo. É uma observação minha. Ele está sempre correspondendo dentro do campo harmônico.
Qual o lugar da música e qual o lugar da individualidade de Lorenzo nesse processo?
Acho que a música é estruturante para ele, não é só do prazer, do gozo, de estar cantando. É estrutural. Sem a música, é difícil de imaginar como teria sido o progresso dele em direção à fala, à construção do sujeito, ao desenvolvimento afetivo e do estar no mundo. Para mim, a música é a forma de ele estar no mundo. Eu olho para ele e vejo que está com umas três ou quatro músicas na cabeça. Ele é essencialmente música, no filme dá para ver. Imagina uma criança com essa estrutura musical ser acolhida de uma forma incondicional para fazer o que ela demandar. Isso é estruturante para uma criança com algum tipo de deficiência cognitiva ou motora. É isso que me fascina. Ele tem um sistema para lidar com a música muito mais refinado do que as pessoas chamadas normais.
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