Quando a futura cineasta e estudante de geografia nasceu, o álbum Clube da Esquina já tinha completado quatro anos, isso em meados dos anos de 1970. Não apenas graças à tecnologia, com a qual ela reavivou depoimentos de uma das almas daquele movimento (e álbum) — Milton Nascimento, mas ainda graças ao apurado gosto musical, Ana Rieper navegou de braçada num universo sustentado, na base, também por Lô Borges e Beto Guedes. Mas, entremeando os gostos por música do filho de seresteiro, Beto; do crooner Bituca (Milton Nascimento), na adolescência, parceiro de Wagner Tiso e, ainda, do estreante, como cantor e compositor, Lô, Clube da Esquina derivou de estabelecidos laços de amizade. O documentário Nada será como antes — A música do Clube da Esquina (assinado por Rieper), igualmente. O longa-metragem estreia, amanhã, nas salas do país.
"O filme nasceu de um reencontro meu com um grande amigo que é filho do Márcio Borges (peça fundamental no movimento mineiro), afilhado do Lô, personagem do filme, que é o José Roberto Borges. Ele, um produtor, eu uma documentarista — somos amigos de juventude. Um filme sobre amizade que parte de uma amizade. Esse filme levou muitos anos para se realizar. Ao longo desse tempo, somado à presença do José Roberto que era pessoa íntima dos artistas, fomos desenvolvendo uma relação de confiança, nos conhecendo mutuamente, criando um ambiente propício para as filmagens", explica, ao Correio, a diretora, lembrada por outros filmes de traçado musical: Vou rifar meu coração e Clementina.
Em 1963, o carioca Milton Nascimento seguiu para Minas Gerais, praticamente, uma década antes da eclosão do álbum Clube da Esquina. E reuniu, em torno de si, de imediato, ou um pouco mais adiante, nomes como Toninho Horta, Flavio Venturini, Nivaldo Ornelas e Ronaldo Bastos, entre outros parceiros da estatura de Fernando Brant (compositor morto em 2015). Embebidas de fundo jazzístico e, claro, de rock, as criações de MPB tiveram impulso, em Niteroi, no auge da juventude de alguns deles por Mar azul. Reviver muitos dos enredos do glorioso passado demandou esforços, claro. "Foi um superdesafio do filme conciliar agendas. Mas, milagrosamente, deu tudo certo! Filmamos tudo em pouco mais de duas semanas seguidas", conta Ana Rieper.
Se os bastidores do encontro entre Paul McCartney e Milton Nascimento tiveram um quê cinematográfico, em dezembro passado, quando da vinda do Beatle ao Brasil (e que teve, entre temas, a criação da música Para Lennon e McCartney), Milton, para além da participação emulada no filme de Rieper, já travou extenso contato com o cinema como aponta a trajetória que toca longas como Fitzcarraldo, Noites do sertão e O viajante. O filme de Ana Rieper, por sinal, dá vazão à comunhão entre as artes.
"São relações muito estreitas de amizade e parceria entre músicos e cineastas naquele tempo-espaço e que indicam uma coesão, digamos assim, entre essas diferentes formas de arte. Estão, sim, houve uma imbricada com a outra naquele ambiente dos músicos e cineastas mineiros dos anos 1970. Esse elemento foi incorporado ao nosso filme de várias formas. Boa parte do material de arquivo usado no Nada será como antes são os filmes, principalmente os mineiros, realizados no Brasil nos anos 1970. Nós buscamos, por meio desses filmes, traduzir um espírito de época. E evocar, ou reforçar essa narrativa pelas imagens", demarca Rieper.
Em grande parte realizado diante de mobilização feminina, o longa Nada será como antes desbravou um campo machista: o da música. "A direção, a produção, a produção executiva, o som direto e a montagem de som são de mulheres. Tivemos também muitas aliadas, como a Cláudia Brandão (esposa de Marcio Borges), a Perla Horta (sobrinha de Toninho Horta) e a Duca Leal (uma das musas inspiradoras), com contribuições que fizeram o filme acontecer", conta Ana Rieper. Ela completa o campo técnico, contando da dinâmica da edição: "A montagem do filme é ancorada nas músicas, é ela que orienta os conteúdos, a movimentação das cenas, as conversas. Os discursos do filme são muito musicais. O filme teve dois montadores excepcionais que são o Pedro Asbeg e o André Sampaio, que colaboraram muito fortemente na forma como as músicas se tornam parte constitutiva das imagens e personagens, e não um elemento à parte, uma inserção".
Entrevista // Ana Rieper, cineasta
Não intriga não haver uma mulher representativa no filme e no andamento do Clube da Esquina?
O mundo da música é muito masculino, até hoje. Na frequência de shows e na leitura de fichas técnicas isso se atesta. É um universo similar ao do audiovisual, diga-se de passagem. Quanto maiores os orçamentos, menor a proporção da participação de mulheres. O Clube da Esquina não é diferente, está nesse mesmo ecossistema. Eu citaria como mulheres importantes na história do Clube da Esquina, além da Duca Leal, a Alaíde Costa e a Elis Regina. Alaíde é um cantora excepcional, uma grande artista. Entretanto vejo o canto dela na antológica gravação de Me deixa em paz como uma participação, muito especial. O filme tem sua narrativa baseada em um espírito de turma, de rapaziada que cresceu junto, um universo que até onde sei não era muito
frequentado pela Alaíde. A Elis tinha muita relação com o pessoal do Clube da Esquina, uma personagem fabulosa, mas que participou mais ativamente em uma fase um pouco posterior, a partir do álbum Clube da Esquina 2, que não é tanto o foco do nada será como antes.
E como é uma mulher focalizando este universo?
Nós mulheres vivemos em constante negociação e muitas vezes luta por espaços. É assim no mundo da música, no audiovisual, essa é a nossa batalha cotidiana. A despeito de questões estruturais, descobri fazendo esse filme que são pessoas adoráveis, que são muito amigos até hoje, que tem um amor jovial entre esses artistas que permanece. Um grande prazer e muito inspirador ver que personalidades tão grandes da nossa música guardam uma vida até hoje marcada por um desejo de liberdade e um amor à arte, maior que qualquer show business. O Lô Borges, por exemplo, eu arriscaria dizer que é um ser de música. Tem uma produtividade impressionante até hoje e vive pra música. É uma forma de estar no mundo que vem da música e chega nela, como o lugar de existir. Muito bonito.
Algo neles envelheceu mal, e qual elemento mantém a vitalidade deles?
É uma música que não envelhece. Eu vejo os jovens aqui de casa, com 16, 17, 18 anos, super fãs, tocando Clube da Esquina em suas bandas, ouvindo esse som, se identificando muito com esse mundo musical. É uma sonoridade e uma poesia que são atemporais e que têm um diálogo muito forte com a juventude. Vejo uma semelhança muito grande com os Beatles, não à toa uma das maiores referências da “ala jovem” do Clube da Esquina. Acredito que muito da força dessa música ainda hoje, vem do fato inspirador de ser uma obra feita por jovens libertários que se juntaram para mudar o mundo. E conseguiram. A musicalidade do grupo exprime isso, e tem muita potência ao juntar de forma tão generosa influências tão diversas, com um resultado a um tempo sofisticado e muito pop.
É uma admiradora declarada do movimento do Clube da Esquina?
Eu tinha e tenho uma afinidade muito grande com filmes que tratam de música, está virando quase uma especialidade minha, algo que amo e que me constitui. E sempre fui muito apaixonada pelo Clube da Esquina, esse disco mítico para a música brasileira. Mas mesmo trabalhando com a realização de documentários musicais, minha relação com o Clube da Esquina sempre foi de fã, de público. Assim como para muita gente, algumas músicas desse álbum e também de outros álbuns de artistas ligados ao Clube, como Beto Guedes e Toninho Horta, contam uma parte da minha vida. São músicas que nos transportam para dentro da nossa memória, do nosso imaginário, da nossa história de vida, uma história afetiva. Eu comecei pelo Clube da Esquina 2, aquele álbum duplo magnífico. Ali pra mim se abriu um portal, de caminhar por uma música que tem algo inexplicável, onírico, ligado ao inconsciente. Eu tinha 17 anos de idade.
Quais os elementos mais emblemáticos ao estudar as composições, a organização e o resultado deste aglomerado de músicos?
Difícil falar sobre os elementos emblemáticos do Clube da Esquina. Tanta coisa... as influências poéticas de Vinicius, Drummond, Garcia Lorca, Guimarães Rosa, junto com a beleza espontânea e profunda de Fernando Brant; uma liberdade muito grande, lastreada por um forte afeto entre esses amigos, que permitiu que músicos fabulosos com características tão diferentes pudessem estar juntos em uma obra. Outro aspecto importante, também ligado ao fato de serem jovens libertários, é a forma
de organização para a produção das músicas em todas as instâncias – composição, arranjos, gravação, lançamento. Uma abertura muito grande, uma preocupação total com a arte, em detrimento de questões relacionadas ao capitalismo, ao show business.
O que teve que deixar de fora, na edição?
Muito material bom ficou de fora da edição por uma série de razões. Músicas, entrevistas fantásticas, material de arquivo. É sempre assim na realização de documentários. Um pacto com os conceitos do filme é necessário, sempre. E para isso ser possível, abrir mão é muito importante, em nome de uma coerência de propósitos de roteiro. Não dá pra fazer um filme que trate de “tudo sobre o Clube da Esquina”. Eu citaria especialmente os materiais de arquivo estrangeiros, verdadeiras pérolas, coisas que eu nunca tinha visto, que deixamos de fora sobretudo por questões orçamentárias.
Cinema é reivindicado como fonte destes autores do Clube da Esquinas. Em que ponto isso fica evidente, na tua percepção?
Ao longo da pesquisa vários indícios apontaram para a importância do cinema como elemento que atravessa a história e a música do Clube da Esquina. Muitos dos compositores e músicos eram ligados ao audiovisual. Márcio Borges participou da realização de alguns filmes, além de ser cineclubista; Murilo Antunes, Tavinho Moura, Wagner Tiso, Milton Nascimento, entre outros, atuaram como compositores de trilhas sonoras de filmes; Milton Nascimento declara, em uma fala, reforçada no filme, que "todas
as (suas) músicas são pedaços de filmes".
Foi à famosa localidade por muitas vezes? Assumiu algum rito, ao avançar na vizinhança?
Estivemos sim na famosa esquina; foi bem emocionante, embora não tenha havido, por opções mesmo do filme, um esforço de interação mais longo com aquele espaço. Nossa passagem por lá foi mais mesmo um botar o alfinetinho, sabe? E claro, olhar e pensar naquele espaço quanto à produção de imagens pra contar aquela história.