Num projeto coletivo, em 2016, ao lado de profissionais como Andrea Tonacci e Dácia Ibiapina, o diretor Adirley Queirós foi selecionado por edital de núcleo criativo, no âmbito da Ancine (Agência Nacional do Cinema). Lá, em meio a discussões sobre "as coisas do latifúndio da Ceilândia", como ele diz, estava o embrião do filme Grande sertão quebradas que, atualmente, está em fase de montagem. Mais do que inspiração, o clássico literário Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, calcificou um teor crítico em Adirley. "Com a pandemia, vieram as releituras e o sentimento de o livro dialoga sempre, para mim, com a aventura do que é o espaço brasileiro, o periférico. É um épico que lida com aspectos humanos. Retrata a relação do oprimido com o espaço. Mesmo os fazendeiros se tornam o que são, a partir do espólio da guerra (por espaço)", avalia o cineasta.
Em relação ao que ficou de fora na representação em cinema, Adirley é enfático: "Ficou tudo — aquilo (o livro) é um mundo, uma Bíblia". Nos vários capítulos da "novela" Grande sertão: veredas, o fundamental, para Adirley, é Minas Gerais e aspectos de religiosidade. "Me impressiona o imaginário, em que circula a ideia do diabo; o que diz respeito ao imaginário periférico. Tanto nas igrejas tradicionais católicas quanto nas evangélicas há isso. O pacto de expulsar o demônio, feito às claras, nas organizações pentecostais e de modo, mais histórico e sutil, na esfera católica", opina.
Curiosamente, realimentadas duas outras outras versões em cinema exploram o universo roseano: O diabo na rua no meio do redemoinho (de Bia Lessa) e Grande sertão (de Guel Arraes). Fator em comum aos filmes é a interpretação de Caio Blat para o personagem central, Riobaldo. "O Guel ficou fascinado com o desafio de transpor o romance para dramaturgia, e ficou inspirado pela peça da Bia Lessa (leia abaixo), que respondeu ainda pela adaptação para cinema", conta Blat. Com a pandemia, o ator ficou dois anos na preparação de Grande sertão. "Quis fazer o narrador, velho, com uma barba de verdade, e na época, a minha ficou enorme. Nessa transposição da linguagem, vimos que o Riobaldo, hoje, seria um cara que cresceu na comunidade e que participa da guerrilha urbana. Como mito, ele seria desses grandes líderes, ídolos de hoje em dia, numa favela de poetas como o Mano Brown, o Sabotage. Riobaldo seria um prosador, um cara da palavra e da rima. Pegamos trechos grandes do Guimarães Rosa, e reorganizamos para que surgissem algumas rimas. O Riobaldo fala meio em ritmo de rap, com tonalidade de funk. Vemos Diadorim, pequeno, rimar os bairros da comunidade. Eles fazem baile funk; então é como se essa prosódia, a fala da favela, que traz rap, rima, islãs, funk, influenciasse, se misturado com a fala do Guimarães Rosa. Algo muito moderno, ousado e arriscado, e muito bonito", observa Caio Blat.
Entrevista // Adirley Queirós
Qual a abordagem central do teu longa?
Tentamos captar a atmosfera do livro, é algo muito, muito livre. Buscamos o sentimento territorial e de classe, percebendo que a Ceilândia faz parte de um sertão. Tratamos da migração que passa pelo Goiás, pelo Nordeste e por Minas. Nosso longa se movimenta entre a Ceilândia e traz personagens são do Vale do Urucuia (MG) e está na fase de montagem. Temos a Léa Alves (de Mato seco em chamas) e uma família de oleiros, de perto do Jardim Lago Azul (Novo Gama), uma família de violeiros e gente do folclore da catira, um povo de folia. No filme, tratamos do lance da sexualidade — de como um homem do sertão está apaixonado por outro homem do sertão. Há em Doadorim aquele sofrimento, mas na nossa abordagem, lidamos mais com lance de sexualidade: a Léa interpreta Riobaldo. Diadorim é a companheira dela, na vida real — a Mônica Alves. Elas são companheiras de muito tempo, desde a época da cadeia. Léa trará o arquétipo do Riobaldo. Leio e releio, o livro por milhares de vezes, desde a pandemia até hoje. Estamos nos apegando muito à história da aventura da passagem da ida para um sertão imaginário. Os personagens circulam num sertão mineiro para chegar ao momento de confronto com Hermógenes.
Como percebe o espírito de luta registrado no teu filme, e houve alguma percepção da calamidade da dengue na Ceilândia neste retrato atual proposto?
A obra está no imaginário das guerras cotidianas, nas guerras por melhores condições de vida, moradia, saúde e bem estar social. Daí reflete-se o sentimento que prevalece no Grande Sertão Quebradas. O território que os personagens moram podia ser Santa Maria, Samambaia e qualquer outra periferia do DF. O Sol Nascente é uma grande locação, com uma porção de vale muito grande. Lá se tem uma ideia de cerrado, do sertão e tem uma casa, no meio da favela, essa é a locação principal do nosso filme. De Bonfinópolis de Minas, temos imagens das vivências com foliões que acompanhamos, nas folias. Fomos, por dois anos consecutivos, para os eventos que ocorrem em janeiro. Já da Ceilândia, como sempre, temos bares, boates e Igrejas, filmamos a relação das pessoas com essa cidade. Na Ceilândia, como dito, a dengue é fortíssima, já derrubou vários conhecidos. É uma calamidade pública prevista — é a crônica de uma doença anunciada. A morosidade da reação (ao mau momento) sempre existe na saúde pública — e sempre vai existir, no tocante ao periférico. Sempre há um estado de emergência, mas ele é previsto. A gente não vê o combate ao vetor (que é o mosquito) sistematicamente acontecendo. Aliás, filmei um personagem com dengue indo para o hospital. Ele passou mal, e eu estava filmando. Tenho o registro feito: o personagem está doente, a gente acompanha e peço para ele interpretar um personagem do Grande Sertão.
Qual a vivência dos atores e quem mais pontuou descobertas para a equipe?
Dudu, que nunca atuou, faz o personagem Hermógenes. Também é um cara que puxou cadeia (na vida real). Léa Alves (Riobaldo), que mora em Águas Lindas (GO) sempre morou aqui na Ceilândia. Os atores são pessoas que moram onde dá para pagar o aluguel. Dudu é da Ceilândia Norte da Ceilândia Norte. O livro gera interpretações muito pessoais. É um cânone: existe e é real. A gente foi atrás de que tem conhecimentos da região descrita. Fizemos leituras muito livres, discutimos, e há leituras maravilhosas, desde a de Antonio Cândido. É uma obra muito citada e tentamos propor o sentimento que ela nos apresentava. Na imaginação, a produção traz a Ceilândia como citação ao grande sertão, e o universo da cadeia, hoje, é uma expansão daqueles jagunços (do passado). Eles não eram muito encarcerados, eram mortos. Hoje em dia, o estado, além de matar, mata, prendendo.
O que motiva teus personagens?
Não são sempre personagens idílicos, em meio à guerra. Eles estão oprimidos, como todo mundo acaba sendo. Acho que quando a pessoa ingressa, se assim pode-se dizer, no crime, ela também está ali pelo espólio da guerra cotidiana e do que ela pode produzir de material. Não falo de ideal de Robin Hood, desse conceito. Primeiro, vem a necessidade de material, tipo: 'eu preciso viver', e cada vez, em um universo mais capitalista. Guimarães Rosa não investe só na disputa materialista, ele te estimula à aventura, com personagens incríveis. Se fosse um livro norte-americano, teríamos umas 30 versões de Hollywood. O roteiro estaria prontinho.
Como nota a existência de demais versões?
Não vi nenhum dos filmes. Mas, em projeto de teatro, acredito que a Bia Lessa seja muito f***. Quanto ao Guel Arraes, acredito que ele vá lidar com o que acha que seja popular. Eu dialoguei mesmo, na verdade, com grupo aqui do Gama, O Semente — de um teatro antigo, de gente negra e inclusive eles também colocarão a peça Grande Sertão . Estão ensaiando há muito tempo. Tive contato com eles pela conexão a um sentimento que a gente cultua. Há ainda um cara chamado Rafael Vilas Boas muito capaz. Quanto ao destino do filme, quero vê-lo na sala de cinema. Se recebemos o edital público para sala de cinema, ele tem que passar em uma. Já existe convite prévio para festivais internacionais, isso porque os organizadores e pedem. Queríamos ele exibido no espaço público na Ceilândia, em que sala de cinema não existe. Roda, roda e roda e nunca sai do lugar, já que não há interesse numa sala de cinema para Ceilândia. Nenhum governo tem esse interesse: há o centro cultural, com espaço já preparado para isso!
Nova dimensão, no cinema
Responsável pela premiada peça que impulsionou o colega cineasta Guel Arraes a se aventurar numa adaptação de Grande sertão: veredas, Bia Lessa, que dirigiu montagem apresentada em Brasília, em 2018, conta que Guel assistiu à peça "umas 10 vezes". "Ele disse que era 'o livro da vida dele' e o nosso espetáculo mostrou que era possível fazer. Deu muita alegria para mim". Atenta ainda à versão de Adirley Queirós, "um gênio", como diz, ela acha "extraordinário ver que uma obra colossal possibilita tantas leituras. Lessa também trouxe ao cinema a própria versão.
"Há a questão, no texto, da potência do homem e ter aquela mulher ali, que só podia ser o que ela era, se ela tivesse vestida de homem, escondida no meio daqueles jagunços — há uma repressão feminina forte. A afirmação dela se dá com o uso do nome feminino (Diadorim). Adoro a ideia de que ela possa ser um homem trans, acho linda, mas não foi nossa opção", comenta a diretora do longa.
Despojados no teatro, os belos artifícios visuais (do teatro) seguem no cinema. "Sou completamente louca por espaço. Isso, pensando que o homem não é o centro de tudo no mundo. Ele está em relação a todas as coisas. Nas minhas duas adaptações, os atores fazem todas as coisas: animais, plantas e pessoas — o homem é uma parte do todo", observa a diretora.
Muito próxima e colaboradora do mestre Eduardo Coutinho, Bia se prendeu à lição minimalista do autor de Edifício Master: "ele dizia — 'meu próximo filme é tão nada, que eu não vou nem a lugar nenhum; as pessoas (entrevistados e atores) virão a mim' (risos)". Bia assume gostar do que sobra: texto e atores. "O que o cinema tem de extraordinário são movimentos de câmera, a luz, elementos fundamentais para se apostar numa ficção", avalia. No filme, a ação se encerra num espaço negro, dentro de um estúdio. Preenchidas pela solidão e a angústia "no nada", as cenas remontam a um passo à frente de feitos radicais de Lars von Trier, em Dogville. "O espaço tem uma importância e o cinema para mim é o espaço em movimento. Há gruas, carrinhos e o andar da câmera, num espaço vivo. Isso é o que me interessa mais do que tudo em cinema", conclui.
Globo Filmes/Divulgação - O diabo na rua no meio do redemunho conta com Caio Blat no elenco
Depoimento
Da imersão em Rosa
"Grande sertão, do Guel Arraes, tem um roteiro distópico, futurista, e há deslocamento da ação do sertão para uma comunidade urbana, numa nova leitura para essa guerra do sertão, do sertanejos, dos jagunços, que, hoje, é a guerra das favelas, das gangues do Comando Vermelho, do PCC, com os jovens se matando em nome da guerrilha urbana. Guel transpôs o universo do Guimarães para esse ambiente e criou essa comunidade do grande sertão que é muito parecida com a faixa de Gaza — um lugar cercado, militarmente, cheio de armas e de câmeras. Riobaldo virou um professor de escola pública e a vida dele é atropelada pela pela violência urbana. Ele decidiu entrar para o bando também principalmente por causa desse encontro dele com o Diadorim, já um guerreiro do bando. Diadorim é uma figura meio de sexo não definido, não binário. O amor dos dois está nessa guerra do sertão"
Caio Blat, ator