Cinema

Uma aglomeração festiva no samba com sotaque paulista chega ao cinema

Baseado ma vida e na obra do celebrado compositor Adoniran Barbosa, 'Saudosa maloca' é o longa estrelado por Paulo Miklos e que chega aos cinemas

 

A boemia que conquistou Adoniran Barbosa foi revertida numa vivência capaz de render ao cantor e compositor de Trem das onze a adoção de linguajar caipira e sotaque com quê italiano, firmando-o como o cronista musical mais evidente, em São Paulo, quando o assunto era samba. Atuante, nos anos de 1930, em programa de calouros da Rádio Cruzeiro do Sul, o filho de imigrantes, que foi de carregador a varredor, passando por postos como entregador de marmitas, garçom e encanador, se viu consagrado com as gravações dos clássicos Samba do Arnesto e Saudosa maloca. Este último, sucesso desde os anos de 1950 no imaginário nacional, concentrou as atenções do cineasta Pedro Serrano, que, em 2018, atuou na curadoria de enorme exposição com materiais do acervo pessoal de Adoniran (entre discos, fotografias e partituras). Serrano concebeu deste universo o sumo do roteiro de um longa encabeçado pelo cantor e ator Paulo Miklos.

Inspirador do programa História das malocas, que estiveram em áureo período da rádio e da televisão, Adoniran, vale a lembrança, foi múltiplo como artista. Há 50 anos, esteve na versão original da novela Mulheres de areia; em 1977, no Teatro 13 de Maio (SP), dividiu o palco com Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti — isso décadas depois de, na Rádio Record, estrelar no radioteatro, os chamados Serões Domingueiros, impregnados de farto linguajar popular. Colaborador regular do conjunto Demônios da Garoa, Adoniran espalhou o talento em participações em filmes de Ademar Gonzaga e Lima Barreto, isso além de incrementar a trilha sonora do filme Eles não usam black-tie. Dono de 90 letras inéditas, o compositor, que morreu em 1982, foi gravado por Elis Regina, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Tom Zé, Zélia Duncan e Criolo. Há 22 anos, três livros elencaram dados da vida de Adoniran que agora encontram apelo visual, em Saudosa maloca. "Vamos todos cantar!", conclama Paulo Miklos, em entrevista para o lançamento do longa-metragem.

Elo Estudios/ Divulgação - Pedro Serrano, diretor
 

 

Entrevista // Pedro Serrano, diretor


Qual é a especificidade da tua ligação com o samba, e foi um curta-metragem que gerou o atual longa, que estreia?

Minha ligação é de amante mesmo. Gosto muito de samba e de música brasileira, como um todo, mas de samba, sou apaixonado. Quando quis contar a minha primeira história, como cineasta, veio essa ideia de transpor para as telas as crônicas musicadas no sambas do Adoniran Barbosa. Eram narrativas muito visuais e que eu achava que deviam ser contadas. Dei assim formato ao curta ficcional que teve uma recepção calorosa do público e da crítica. Naturalmente, muita gente falava nele virar um longa. Comercialmente, recebemos uma proposta de uma distribuidora e desenvolvemos o longa. No meio do caminho, o nascimento do documentário (Adoniran — Meu nome é João Rubinato) foi uma alternativa de linguagem para falar da biografia, para falar da vida — uma vez que a abordagem do filme previsto (o ficcional) não contemplava cinebiografia. Documentário você consegue fazer com menos recursos: foi um jeito de fruição e de estudar o personagem, me aprofundar. Um projeto levou ao outro sem que eu tivesse planejado isso. Surgiram, no caminho. Fiz com muita paixão: gosto demais do tema é um verdadeiro prazer trabalhar.

Com a questão do samba, o Adoniran se viu discriminado?

Dizem isso da associação com a lei da vadiagem. Era uma forma justamente de opressão cultural e para pegar principalmente essa cultura que era uma cultura negra, das ruas e reprimir. Assim até o período de samba que a gente fala no filme do Adoniran nem passa tanto por esse lugar. Se tinha a origem do samba que existe aqui em São Paulo, que vem da Barra Funda, com Geraldo Filme, os primeiros batuques no Largo da Banana, sem falar do Rio de Janeiro. Acho que se passou a desvincular (da criminalidade) quando começou, a partir das décadas em que se grafou o embranquecimento, nas rádios, num processo em que a música ficou comercialmente viável e gravavam-se discos e houve o granulador. É a fase de Francisco Alves, com o samba passando a ser um gênero considerado brasileiro, e aceito, numa condição em que se deixa de ser perseguido. As pessoas não deixaram de ser perseguidas, mas o gênero foi aceito. Continuavam sofrendo a mesma repressão de serem enquadradas. Nisso que se diz da cultura da vagabundagem — o vadiar do samba — que aí, sim, passa por todos. O próprio Adoniran traz muito isso do lance do vagabundo, do vagulino como ele fala, numa expressão que ele usa. Isso de vadiar, sem, necessariamente, haver um trabalho fixo.

Há um universo de Adoniran embutido no filme, não?

O filme o roteiro é todo construído baseado nas músicas dele, então, na verdade, são várias citações, muitas homenagens, inúmeros, como dizem hoje, easter eggs. Assim, para quem conhece a obra, tem diversas passagens em que os diálogos são versos de samba do Adoniran, noutras passagens, uma música virou uma imagem... O filme é todo permeado por esses momentos do universo da obra dele. Quem é fã vai encontrar diversas situações e citações, vai reconhecer letras nos
diálogos. Quem não é também vai entrar numa história universal de entender como esse território do samba fala do povo que luta por temas como o da sobrevivência, o enfrentamento da fome, a briga
por moradia. Falamos de especulação imobiliária, de desenvolvimento da cidade, do progresso desenfreado e, independente das letras do sambas, a história fala por si só.

Vocês também valorizam o teor de artista plástico do sambista, no filme?

A coisa dos objetos está bem retratada lá no documentário. Ele fazia utilitários e objetos de decoração, com materiais quase que recicláveis. Ia criando coisas incríveis, com habilidade de artesão. Nem classificaria como artes plásticas. Não existia esta pretensão. Era mais um hobby. Uma vez, o sobrinho dele me falou e eu acho que faz sentido qu, por ele ter trabalhado como operário, em metalúrgicas, desenvolveu um pouco dessa habilidade com as mãos. Se você pega para ver a bicicletinha criada por ele, das coisas que ele mais gostava de fazer. O Paulo Miklos teve a oportunidade de contracenar, aliás, com a bicicletinha real... O Adoniran criava coisas super elaboradas, do pneu a detalhes de pedal. Ele fazia e gostava de revelar para as crianças que o visitavam aos fins de semana, iam na garagem da casa dele. Era muito legal, tinha um trem montado num trilho elétrico que funcionava! Era belo e rústico. Acompanhou a fase dele mais velho, com menor atividade artística, do cotidiano nos rádio em que ele foi muito proeminente. Já nos anos de 1950, tem fotos dele dando bicicletinhas para os colegas de rádio, como presente. Foi algo que ele fez a vida toda. Isso contribuiu para se montar um imaginário, para um cara que era bem humorado, leve, divertido. Fomos ainda para esse lado mais introspectivo, profundo e até triste do ambiente privado, com ele muito mais velho. Mesmo assim, não deixou de ser engraçado: ele era um ranziza, um amor, mais ferino, com críticas inteligentes e sempre um olhar ácido sobre as coisas. Daí talvez a facilidade de fazer crônicas, sob olhares tão específicos.

 

Paulo Miklos/Divulgacao - Paulo Miklos reina em Saudosa maloca

Três perguntas // Paulo Miklos

Qual o diferencial de marcação do samba do Adoniran?

E ele parece que começou muito cedo né eu queria também Ô Adoniran, em especial, é muito moderno — como ele conta os causos nos sambas, numa modo em que desenrola histórias; nisso, é totalmente diferente do formato tradicional do sambas. Há uma modernidade muito grande nisso. Eles são meio que irregulares, não têm isso de sempre terminam no refrão; às vezes, até terminam, mas de um jeito maravilhoso, como em Saudosa maloca, por exemplo. São sambas que trazem uma novidade muito grande: sentimos que essas canções continuam muito atuais: o filme trata desses motivos da especulação imobiliária, do avanço do progresso desmedindo. Da quebra das nossas paisagens afetivas, na cidade. São dados atualíssimos. Então, quando a gente estava filmando, me vi passando pelos lugares, pela casa em que eu cresci com os meus pais, que já tem um edifício construído no lugar. Me tomou aquele sentimento: sei muito bem do que ele tá falando. Há o avanço louco do progresso e que meio que força os personagens, que não querem, a se enquadrar. Ficam meio que obrigados. É um progresso que parece tudo comprar mas nem tudo, como mostra no filme, pode. Tem um empreiteiro que quer comprar o samba, coloca dinheiro na mesa, e eles não aceitam: aceitam dinheiro, mas não aceitam a compra (risos).

Como você percebe sua afinidade com o cinema?

Eu acho que um amor mútuo. É uma paixão o cinema. Quando eu fiz o primeiro filme, a minha primeira experiência com o longa O invasor, para mim, foi descortinada uma nova possibilidade de realização artística. Eu nunca tinha imaginado e, quando assisti ao filme, o que a gente tinha feito, e na tela grande, caí para trás. Nunca mais quis parar de fazer cinema. Tenho feito sempre e amo fazer. O interessante é que cada projeto traz um mergulho muito característico, muito próprio de processo. Para você entrar num personagem, contar uma história. Enfim, já fiz teatro, fiz novela, minisséries e fiz de tudo um pouco. Gosto de alargar os meus horizontes. Uma hora é um matador de aluguel; outra, um sambista e isso é maravilhoso.

Como é cantar em cena, e o que demandou?

O Adoniran é esse personagem que me trouxe uma grata surpresa. Faço ele em dois momentos diferentes. Eu estou com 65 anos, no meio do caminho. Então em etapas, eles me rejuvenesceram para poder viver nos anos de 1950, com as tramas das histórias do samba do Adoniram convivendo com ele. Noutro momento, me envelheceram para eu poder estar naquele tempo da memória, quando ele relembra as histórias e passa a contar isso para o jovem garçom que traz muita curiosidade. Saber como foram as histórias e tudo mais. É muito rico poder viver um personagem em dois tempos diferentes. Quanto a cantar em cena trazer um desafio? É uma coisa muito gostosa quando eu tenho a chance — já fiz músicos em outros filmes: de churrascaria e fiz
guitarrista acompanhante. O papel do Adoniran me proporciona poder usar alguma coisa que eu sei trazer para o personagem, digo, musicalmente. É uma alegria poder ter uma roda de samba no meio da filmagem, e cantar ao vivo é uma alegria sem. Essa vibração toda com a alegria estão nas cenas e transbordam, com espontaneidade.

 

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