Cinema

Precursor da sofrência: vida e obra de Lupicínio nas telas de cinema

Associado ao sofrimento agudo do amor, o cantor e compositor Lupicínio Rodrigues tem a trajetória reconstituída em longa que chega aos cinemas

 

Fator determinante, na cabeça do diretor estreante Alfredo Manevy, que conduz Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor, está no fato de o próprio cantor e compositor gaúcho figurar na principal linha narrativa, a partir da sua versão da história. O filme sobre o compositor entra em cartaz hoje nos cinemas da cidade. Segundo Manevy, em atitude generosa, o artista reconheceria que, passada a era de ouro de seu doloroso samba-canção, as renovações que vieram foram reconhecidas por Lupicínio como "algo para o bem da música brasileira".

"Acho que a cornitude (que ele tanto cantou) tem um lado folclórico, engraçado, mas traz outro lado que é uma chave para pensar o Brasil e a sociedade em que vivemos", pontua o cineasta. Entrevistas raras, como a última, com ele, no hospital, a três dias da morte, e que era dada como perdida, recheiam a trama do filme. "Inclusive, nessa entrevista, ele fica sabendo que Caetano Veloso gravou Felicidade, e Caetano era um menino! Aliás, ele chama Caetano de menino, na entrevista. É dos momentos finais da vida dele, no qual faz um pequeno balanço da carreira", enfatiza Manevy. Resgatar uma entrevista, muito danificada abrigada no Museu da Imagem e do Som (RJ) foi outro ponto alto da salvação propiciada pela equipe do filme. "Grande parte dessa fala, de 1968, permite o contato direto com a voz do Lupicínio, que é muito particular. Ao fim, com a os elementos da montagem, frisamos um quê de fotonovela contemplado na trajetória do artista", observa. E, nesta entrevista ao Correio, Manevy fala sobre a pesquisa para o filme e sobre o mundo de Lupícinio Rodrigues.

Fotos: MiS- RJ/Divulgação - Alfredo Manevy

 

Entrevista // Alfredo Manevy, diretor

Como refletiu o fato de Lupicínio ter tido, por vezes, pouca valorização comercial?

O fato de ele ter sido lesado várias vezes na vida e na carreira em relação aos direitos autorais tem a ver com a dedicação ao tema. O filme conta a história da música Se acaso você chegasse, que é muito importante porque fez sucesso, no Rio de Janeiro, na voz de Ciro Monteiro e depois lançou Elza Soares, tendo chegado aos Estados Unidos e usada em filme americano, sem que o Lupicínio fosse creditado. Na época, ele levou na brincadeira mas, aos poucos, acho que o filme trabalha isso: é um pouco folclórico, engraçado, vai ganhando contornos trágicos, se a gente pensa que a música tem uma força imensa, a música brasileira, e, muitas vezes, boa parte dessa riqueza econômica não chega aos artistas, a quem cria e produz no Brasil, como no caso do João Gilberto, que foi lesado nos contratos que assinou quando era jovem. Então, fiz questão de selecionar trechos da carta do Lupicínio sobre dinheiro, e falta de grana. Não é por acaso que ele fala muito nisso: reflete, com isso, a corda bamba na qual os grandes mestres da música popular, especialmente, os que vieram de baixo, tiveram que lidar para poder manter a trajetória artística, em meio a vários obstáculos.

Ele sabia aceitar a chegada de novas vertentes e músicos, não?

É um dos aspectos mais interessantes da personalidade dele. Lupicínio tinha tudo para guardar ressentimento do iê-êi-iê, da bossa nova e dos gêneros musicais que destronaram a dor de cotovelo, o tal samba-canção abolerado, que foi muito forte nos anos de 1940 no qual ele era um dos nomes mais potentes da era do rádio. Quando chega a bossa nova e depois o iê-iê-iê, ele perde espaço, indo, rapidamente, para um certo esquecimento. Valorizamos daí a ideia dele como um pensador da música: há músicas que conduzem o filme, e a narrativa abre espaço para uma fruição musical. Lupicínio se posiciona de maneira generosa, quando diz que era preciso vir uma renovação. Na Argentina, até hoje, escutam Carlos Gardel! E o Brasil foi para frente, com a capacidade da renovação: é uma força do que a cultura brasileira tem de muito positivo. Lupicínio tem consciência que o processo do qual ele vem, como tributário de uma geração anterior, de Mário Reis, está abrindo e precisa vir essa ruptura. Na lucidez, ele vê essa tradição da linha evolutiva do samba, viva até hoje. Ele até dá umas cutucadas, dizendo que Caetano e Gilberto Gil não segurariam uma noite inteira com ele. Nisso há uma demarcação de tempo, no sentido de que Caetano e Gil são de outra etapa da indústria musical, com a televisão (que é uma sofisticação). Na época do Lupicínio ainda os compositores tinham pé na boemia, e o profissionalismo não era a regra cem por cento, era parte do jogo ficar, à noite, nos bares e marcar ponto. Ele tinha uma certa clareza de reserva de mercado, na medida em que ele tinha a versatilidade para trabalhar com vários gêneros musicais, e sabia dialogar com a indústria musical.

O traço da cornitude descrita em músicas foi inovador?

Esse tema da cornitude acho das grandes sacadas do Augusto de Campos, quando ele pontua o elemento como status de arquétipo universal. O Zuza Homem de Mello também diz que foi a cornitude que permitiu que, em São Paulo, uma elite refinada incorporasse Lupicínio. Ele era muito popular nas classes populares e é aceito nessa elite no momento em que há modernização de comportamento, nos anos 1950. É um elemento que deixa de ser um tabu e vai virando uma uma coisa aberta da qual é possível falar, rir e brincar, e sofrer. É genial como ele constrói esse arquétipo do macho traído — ele está mexendo com uma ideia do ressentimento, um tema superimportante para se pensar o Brasil. O Cazuza diz que Lupicínio não mistifica as relações amorosas, ele fala exatamente dos sentimentos mais ruins, daqueles piores e obscuros, como a vingança, o ódio , a mágoa, a rejeição e a indiferença. Revela tudo isso, sentimentos humanos, muitas vezes, jogados embaixo do tapete. Lupicínio bota o dedo na ferida. Mas ele transmuta isso em poesia, e não se agarra ao ressentimento. A questão do ressentimento, como mostram filósofos e psicanalistas, é um tema do Brasil, como uma questão cultural forte e que tem consequências políticas inclusive. Lupicínio está futucando um sentimento muito central, e é incrível que a música possa exatamente transformar em melodia, poesia, em letra, as questões centrais da cultura do espírito e da vida social do nosso tempo.

Como vê o lance de cancelamento do universo musical por ele criado?

A gente optou no filme por não esconder o machismo das letras, por não esconder o machismo das crônicas. Pelo contrário, deixar bastante aberto, explícito, colocando em perspectiva, trazendo o contexto de um tempo, de um homem daquele tempo, e também projetando para o presente, porque o Brasil também tem um elo de continuidade com aquela época. Nesses traços de machismo e relacionamentos amorosos, nas questões de gênero, eu acho que têm dois aspectos: Lupicínio inspirava as mulheres, ele se inspirava em mulheres, mas eram mulheres intérpretes que, ironicamente, tiravam o melhor das músicas dele. Elas invertem aquelas letras machistas para trazer o ponto de vista feminino: não era mais o homem traído, mas era mulher traída e o homem enganador. Da inversão, ele até dizia que nem precisava e nem queria autorizar, e deixava livre. Na montagem do filme, e na narrativa, a gente optou por trazer também o ponto de vista de algumas mulheres da vida dele. Não apenas o ponto de vista do Lupicínio prevalece, a sensibilidade dessas mulheres emerge. Vem a narração característica do Paulo César Pereio, que traz consigo já toda uma uma tradição do narrar  cultural, muito atrelado à ideia do macho gaúcho. Ele brinca com isso, sempre brincou com esses estereótipos. Na base da reflexão, o filme se posiciona contra o cancelamento. Essas músicas não têm que ser canceladas: devem ser ouvidas, refletidas e criticadas. São espelho do Brasil e, num amadurecimento, não precisamos cancelar. Cancelar não ajuda a gente a avançar e apontar para o futuro.

A sofrência de hoje deriva de Lupicínio? 

A sofrência de hoje em dia bebe na fonte do Lupicínio, a dor de cornitude, o sofrimento como espécie de prazer que essas letras reconhecem. Na nossa cultura latina, os relacionamentos amorosos passam por uma dose de sentimento universal da cornitude, segundo Augusto de Campos, ele atribui um status shaskespeariano de cornitude. No Brasil, isso fala muito de características das relações, com Nelson Rodrigues, em certa escala, no teatro dele, com exagero, melodrama, deboche, no limite do absurdo. Há essa matriz nas versões atuais, quando a gente pega o sertanejo, há uma decantação embalada como produto industrial massivo, se perde muito da sofisticação do Lupicínio, mas se mantém o mesmo campo magnético de mobilização, no abraçar da sofrência que traz uma chave muito mais mercantil, mas, sem dúvida, bebe nessa tradição. Ele reconheceria essa influência, generoso como ele era, mas também perceberia uma certa distância desse planejamento ultrapragmático da indústria sertaneja. O que ele fazia tinha um pé muito forte na boemia, na autenticidade, nos laços comunitários. Lupicínio, como o rei da sofrência, veria coisas parecidas e diferentes nos seus atuais herdeiros.

Como ele se desvencilhou do racismo?

O filme narra episódios de racismo sofridos tanto pelo pai dele, que seguiu para o Grêmio, depois de o Internacional se negar a jogar com o time dos Canelas Pretas (do qual o pai era presidente), e isso é marcante na vida dele, quanto pelo próprio artista, que já muito conhecido, sofreu preconceito em Porto Alegre. Temos aliás que lembrar que, na capital, ele tirou proveito das comunidades negras e ainda em Santa Maria. Com a pesquisa do filme, brinco até que Santa Maria é uma espécie de Rosebud. Em dois breves anos, houve intensidade: ele compôs Felicidade, a música mais conhecida dele, e decidiu se tornar compositor. Lá, ele foi acolhido numa comunidade de famílias negras, de clubes negros, então ele soube tirar proveito de laços de solidariedade dessas comunidades para ter um espaço afetivo de proteção e se desenvolver enquanto artista. Sim, ele lidou com o racismo de um estado, de uma região, que se pensa branca.

No que o filme é singular?

A textura da voz dele dá um apelo. Há muita força no filme nele, pela voz, ir contando uma história sedutora, dado o efeito dele. É mais forte do que qualquer comentário externo. A condução do próprio personagem contar foi fruto de muita pesquisa. Mergulhamos nos acervos, encontramos essas pérolas e podemos reconstruir um personagem do qual se tem poucas imagens em movimento. Nisso está a a diferença em relação a outras cinebiografias. É um grande personagem que atravessa o século 20, que cruza figuras históricas capazes de conquistar gerações, ele passa perrengues e sempre com sorriso no rosto, deboche, uma certa ironia, e uma ambiguidade. Na fala dele, há a suavidade de certo cinismo — foi algo que Morais Moreira me disse, que achava, inicialmente, que Lupicínio era cínico. Ele tem um estilo de voz, um figurino, as unhas, a roupa e os sobretudos e a elegância no trato. Nisso, ele é muito singular: quantos sambistas a gente vê com essa roupa, esses casacos de frio do Sul, em muitas fotos parecem ser de um filme de detetive dos anos 40, com aqueles carros e roupas. Me fascinou esse personagem camaleônico, versátil que de alguma permite pensar o Brasil.

 

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