O Oscar anda tão globalizado — à caça de audiência e colocação de todos debaixo de um guarda-chuvas da diversidade, que até mesmo cachorro europeu se entretém, na plateia do 96º Oscar: foi o caso de Messi (visto no elenco do surpreendente Anatomia de uma queda). Previsível, a festa fez, por alguns raros segundos, as orelhas de Messi pararem em pé. De pé também ficaram os votantes das 23 categorias reunidos no Teatro Dolby (Los Angeles), em momentos pontuais. A delicada apresentação de Billie Eilish, com What was I made for?; o genuíno encontro de Schwarzenegger, Danny DeVito e Michael Keaton (da antiga franquia Batman); a aparição do poderoso Al Pacino (algo hesitante na apresentação, aos 83 anos) e o discurso mais potente da noite, lançado pelo diretor do documentário 20 dias em Mariupol — foram dos que empolgaram. Ryan Gosling, num número musical inesquecível, igualmente, coloriu o evento.
Trinta anos depois da festa dourada reservada para A lista de Schindler, novamente o cinema, imerso num mundo de guerras, forçou reflexões, com as premiações de Oppenheimer e ainda de Zona de interesse (melhor longa internacional). Diretor do último, situado na Segunda Guerra, no palco, Jonathan Glazer sublinhou (em menção à Gaza): "Todas as nossas escolhas são feitas para, numa reflexão, nos confrontarmos com o presente. Não quero dizer: 'Veja o que eles fizeram naquela época', mas, sim, 'Veja o que fazemos agora'. Nosso filme mostra onde a desumanização leva ao nosso pior".
Diretor de 20 dias em Mariupol, Mstyslav Chernov aproveitou o palco, discursando em torno da invasão russa à Ucrânia: "Podemos garantir que o registro histórico (criado a partir do filme) seja corrigido e que a verdade prevaleça e que o povo de Mariupol e aqueles que deram suas vidas nunca sejam esquecidos, porque o cinema forma memórias e as memórias formam a história". No palco, a politização do discurso de Jimmy Kimmel se afunilou para Donald Trump, ao qual reforçou caber "pena de prisão".
Num ano em que a importância dos dublês para a indústria foi ressaltada, com um clipe que mostrou desde os pioneiros riscos corridos pelos humoristas Chaplin, Harold Lloyd e Buster Keaton, Kimmel estendeu a graça, na menção à greve de pessoas "pretensiosas e superficiais" como os habitantes de Hollywood, e atentou para (vedados) riscos do avanço da inteligência artificial na esfera dos atores e das atrizes que, de qualquer modo, podem ser trocados "por gente mais jovem e mais atraente". Os dramas densos selecionados para o Oscar sofreram nas língua afiada de Kimmel: "na Alemanha, seriam considerados comédias românticas".
Como adiantado pelo Correio, a premiação aderiu a tônica dos conflitos bélicos. Venceu, como melhor animação, O menino e a garça, criação do mago japonês Hayao Miyazaki, gerado pelos rescaldos do pós-guerra, como impresso na narrativa. Ligado, na criação, aos efeitos da bomba sobre o Japão, Godzilla, aos 70 anos, com Godzilla minus one obteve o primeiro Oscar (atribuído aos efeitos visuais). A animação em curta War is over! Inspired by the music of John & Yoko, com teor pacifista, rendeu prêmios Oscar, um deles entregue a Sean Ono Lennon, filho do casal. Dono das estatuetas de filme e melhor direção (por Oppenheimer), Christopher Nolan (que acumulou oito indicações, na carreira), agradeceu: "Não sabemos para onde vai esta jornada incrível (do pouco mais do que centenário cinema). Mas saber que vocês (da Academia) acham que sou uma parte significativa disso representa muito para mim". Para a indústria também: com lucro de US$ 960 milhões, o longa fica atrás apenas dos oscarizados Titanic e O senhor dos aneis: O retorno do rei.
Pontos altos
Sincerão
Diretor e roteirista (premiado, com Ficção americana) Cord Jefferson destacou no palco, como estrante, a necessidade de tirar o peso da concentração de investimentos em fitas de Hollywood. “Entendo que a indústria seja avessa ao risco. Mas filmes de orçamento na ordem de US$ 200 milhões nem sempre dão certo — o risco é inerente". E arrematou a matemática de se apostar em 20 filmes de US$ 10 milhões. "O próximo Martin Scorsese, a próxima Greta Gerwig ou o próximo Nolan podem estar neste nicho de aposta", concluiu.
Coerente
“Fizemos um filme sobre o homem que criou a bomba atômica e, para o bem ou para o mal, agora vivemos neste mundo de Oppenheimer. Daí, gostaria de dedicar o Oscar aos pacificadores de todo o mundo” — disse o intérprete do protagonista de Oppenheimer, Cillian Murphy, empunhando o Oscar de melhor ator.
Os esnobados
Apesar de ser o filme mais rentável da temporada, Barbie, com oito indicações, converteu apenas uma em Oscar, isso depois de trazer para a meca do cinema a polpuda bilheteria de US$ 1,4 bilhão. Noutra vertente de perdas, Martin Scorsese, aos 81 anos, se viu em má situação, com Assassinos da lua das flores, indicado a uma dezena de prêmios, não capitalizou nada de estatueta, como em 2020, com O irlandês, e ainda, em 2003, com Gangues de Nova York. Vencedor de um único Oscar de direção , por Os infiltrados (2007), ele se tornou o mais idoso cineasta vivo, com maior número de indicações. Em Cannes, no ano passado, ele admitiu: "É a vez dos outros. Tenho que ir. Há crianças por perto", e completou: "Gosto muito das estátuas douradas. Mas, agora, penso em tempo, energia e inspiração — isso é o fundamental”.
Homenagem sem imagem
Andrea Bocelli e o filho Matteo entoaram Time to say goodbye, no segmento reservado a homenagear artistas falecidos ao longo de 2023, e somente, ao fim, em enorme lista, estava cravado o nome da brasileira Lea Garcia. Junto com astros como Don Murray (de Nunca fui santa, com Marilyn Monroe), o diretor Paolo Taviani e a cantora Sinéad O´Conner, Lea Garcia obteve o reconhecimento, em particular pela participação em Orfeu do carnaval (filme que, em 1960, obteve o Oscar de melhor fita internacional e ainda a Palma de Ouro no Festival de Cannes).
Boa garota
Junto com uma dezena de papéis de personagens femininas muito liberais, entre as quais a cafetina de Jo Van Fleet, as prostitutas de Mira Sorvino, Jane Fonda, Elizabeth Taylor e a cortesã de Lila Kedrova, Emma Stone venceu o segundo Oscar da carreira, por Pobres criaturas. Com o feito, se equiparou a 17 atrizes, entre as quais Renée Zellweger, Jessica Lange e Glenda Jackson. Numa acirrada corrida, junto à estrela de Assassinos da lua das flores, Lily Gladstone, Emma venceu, e salientou: "Divido o prêmio com você (Lily). Estava ansiosa por você. E foi uma honra fazer tudo isso juntas; espero que possamos voltar (à situação) dessa, juntas, novamente".
Emoção genuína
Pouco antes da premiação da coadjuvante Da´Vine Joy Randolph (Os rejeitados), a vencedora por 12 anos de escravidão, Lupita Nyong’o foi exemplar ao saudar a colega: “Sua performance é uma homenagem àqueles que ajudaram outros a se curar, mesmo em face à sua própria dor". A personagem que encampou é uma mãe ferida com a morte do filho na Guerra do Vietnã. Da´Vine agradeu à determinada mãe, da vida real, que a encorajou a ser atriz. "Sempre quis ser diferente, mas agora percebo que só preciso ser eu mesma. Obrigado por vocês (da premiação) me verem", pontuou.
Debochado
Prestes a ter 59 anos, Robert Downey Jr. venceu o primeiro Oscar, de coadjuvante, por Oppenheimer. Alvo de piadas maldosas sobre a extensa "carreira" do astro, ex-dependente químico, o ator apresentou um discurso de agradecimento espirituoso. Ao falar da infância traumática e agradecer aos votantes da Academia, disparou: "Gostaria de agradecer a minha veterinária — melhor dito, esposa — Susan. Ela me encontrou, um cachorrinho de estimação de resgate, rosnante, e me amou, trazendo-me de volta à vida. É por isso que estou aqui". Ele finalizou celebrando a estilista, e o advogado, sempre ocupado com seus "seguros" nos contratos e em aliviar suas temporadas "na prisão".