Registros cada vez mais plurais têm despontado, a partir da especificidade e do controle exercido por mulheres na produção de conteúdo audiovisual. É o caso de Apaixonada, de Natália Warth, As 4 filhas de Olfa, de Kaouther Ben Hania, Levante, de Lillah Halla, e No ano que vem, de Maria Flor. "Uma equipe majoritariamente feminina traz harmonia para as filmagens. Tivemos, no nosso caso, um ambiente de trabalho muito carinhoso e cuidadoso, com muito olhar para o outro. Acredito que isso seja fruto de uma equipe mais feminina", observa a atriz e diretora Maria Flor, à frente da série do Canal Brasil No ano que vem. No roteiro de Márcia Leite pesam as transformações de corpos, dados sobre gravidez e etarismo, tudo conduzido por Maria Flor, que assume, enquanto espectadora, a admiração por cineastas como Laís Bodansky, Anna Muylaert, Sofia Coppola, Greta Gerwig e Justine Triet (indicada ao Oscar por Anatomia de uma queda).
Na conjuntura atual, com espaço para o estabelecimento de visões preponderantes de mulheres, Maria Flor defende espaço para todos e para sentimento de comunhão. Daí a resposta, na ponta da língua, para o papel dos homens na sua dramaturgia. "A série é sobre as relações humanas, acredito que os homens façam parte dessas relações", avalia. Até mesmo em filmes com tradicional expectativa de equidade de gêneros, caso da comédia romântica, o público pode ser surpreendido, como no caso de Apaixonada, que estreia nesta semana, com Giovanna Antonelli, também produtora associada da fita.
"Curto o formato comédia romântica, mas as histórias vão se remodelando, modernizando e acompanhando as mudanças da nossa sociedade. Fizemos um filme cujo foco está na descoberta do amor próprio pela personagem. É visão muito mais atual e necessária", observa a atriz. Fazer e falar sobre o que quiser é meta de Antonelli, ao tratar das verdades de uma mulher de 40 anos, o foco destacado no livro de Cris Souza Fontês que deu base ao roteiro do longa de Natalia Warth. Lido numa só noite, na pandemia, o texto tocou a atriz, que se afirma, progressivamente, mais madura, segura, "e sem filtros" (como brinca).
"Maior amor próprio deixa a gente imbatível e forte — é muito bom amar os próprios sonhos e desejos. Eu não foco em exigências do público. Gosto, mesmo, é de contar boas e singulares histórias. Tem um pouco da Bia (a protagonista) em cada mulher que for assistir ao filme. Contar enredo de quem se apaixona por si mesma e pela vida é uma bela homenagem a todas nós, mulheres", demarca. Ganhos e trocas na equipe, como produtora, levaram-na à composição de "um filme para todos". Já, atrás das câmeras, uma celebração predominou. "Poder estar integrada à equipe e compô-la, exclusivamente, por mulheres foi um diferencial. Esse time de mulheres fantásticas acrescentou muito ao dia a dia do set", analisa Giovanna Antonelli.
Sofrimento retrabalhado
Um documentário mesclado com ficção, mas que chega ao âmago das feridas de uma mãe e duas irmãs: assim é As 4 filhas de Olfa, que disputa o Oscar de melhor fita documental e estreia nesta semana na cidade. No filme de Kaouther Ben Hania, que competiu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, pesam dramas violentos e os desaparecimentos de duas das quatro filhas de Olfa. Num artífício de confronto com a própria noção de maternidade, Olfa acolhe duas atrizes que vivenciam a realidade das filhas sumidas.
"Quem definiu limites de atuação foram as personagens da vida real. Elas estipularam limites: a história é delas. Foi tranquilo, e não tivemos momentos tensos com relação a isso", conta, em entrevista ao Correio, a atriz Ichraq Matar que, no filme, revive etapas da vida de Ghofrane. O peso da sororidade foi vital. "Dentro e fora de cena éramos como uma família. Passamos mais de um mês juntas. Por todos os momentos, até mesmo nos intervalos de filmagem. Voltávamos para casa nos mesmos carros. Até hoje, temos um contato muito forte. Nos vemos regularmente", explica a atriz.
Numa lista impactante, Ichraq atenta para elementos considerados tabus, na sociedade da Tunísia em que vive. "Falar de genitália, menstruação, falar de corpos e da relação das mulheres com eles! Não podemos falar, de tudo, livremente, e em público. Atrizes, por exemplo, são corajosas quando atrevem-se a beijar homens, livremente. São temas e tratamentos que não são muito bem vistos na nossa sociedade. Mas é importante falar disso, já que todos deveriam se acostumar", comenta a intérprete.
Na Tunísia, o filme teve público intenso de mulheres bastante jovens, mas como diz a integrante da equipe, as mais velhas, nada acostumadas, tomaram o "bom choque geracional", com discussão de virgindade, iniciação sexual e crescimento de seios. "Temas ignorados permanecem tabus. Se quebrarmos barreiras, paulatinamente, as pessoas se acostumarão. Não deveríamos ter medo — é assim que se transformam as mentes. Temos que dar espaço para as mulheres se expressarem. Devemos criticar posições de abuso", avalia a atriz.
Entrevista // María Elena Morán, roteirista
O enriquecimento, por meio da ampliação de horizontes, faz parte da constante proposta da roteirista María Elena Morán, junto aos espectadores. Ela até assume como estratégicas as abordagens de elementos que dão sentido ao desejo de interrupção de uma gravidez indesejada por parte da figura central do longa Levante, uma esportista de 17 anos. Nisso, muitos corpos dissidentes se apresentam na telona de cinema, que, no passado, movimentou e impôs padrões. "Toda mudança social demora, sem muitas exceções. Reações contrárias são muitas e são barulhentas, mas eu acho que o enorme tamanho do incômodo dos conservadores diz muito sobre os avanços que estamos tendo nesse sentido", avalia María Elena, que trabalhou o roteiro com a diretora do filme, Lilliah Hallah.
Existe particularidade na assimilação das mulheres brasileiras frente aos temas de opressão pontuados no longa?
Estreia em Cannes foi incrível, muito bonita, emocionante, mas era evidente que estávamos num lugar absolutamente branco, europeu, rico; ou seja, o cúmulo do privilégio. Um lugar onde o aborto não é criminalizado. É de se esperar que a voltagem da resposta emocional dese público fosse um pouco menor, menos à flor da pele, em função da distância cultural. Já no Festival do Rio, a voltagem emocional foi à estratosfera. No Brasil, o público tem uma identificação plena com as personagens, nas quais se vê representada, e muita gente na plateia consegue entender o tamanho do drama da Sofia porque, em muitos casos, ou viveu ou acompanhou alguém que o viveu e sabe o que significa. Em outros países da América Latina, por exemplo (com os quais compartilhamos o tabu do aborto, as terríveis consequências da sua criminalização, o racismo e o machismo estruturais, o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+, etc.) a resposta será parecida.
Há percepção limitada em alguns tópicos, por parte do público masculino?
Eu tenho sentido que há uma resposta boa, talvez não tão emocionalmente impactante e engajada quanto a das mulheres e pessoas que engravidam e a da comunidade queer e trans, por exemplo – a quem precisamos ver mais e mais nas telas e ocupando espaços de poder em todos os setores. Entretanto, acho que o público masculino tem alguns pontos de identificação com a personagem do pai, que no começo não reage bem, mas vai entendendo qual é o seu verdadeiro lugar ali, que não é um lugar de decisão – e daí o desconforto – mas de apoio e acolhimento. A ideia era, também, retratar, ainda que de forma sutil, a realidade das quase 500 crianças que são registradas apenas pela mãe cada dia no Brasil.
Qual a potência da equipe?
A alegria e a coletividade são duas escolhas absolutamente fundamentais que estiveram desde o começo da ideia e que foram ocupando mais espaço na medida que fomos entendendo a importância política de ambas: é essa rede de apoio de Sofia o que faz o filme se tornar o que ele é hoje. O tema, mais do que a interrupção de uma gravidez indesejada, é a necessidade desse coletivo para atravessar um momento tão dramático quanto esse – que só é dramático pela circunstância de estar num país onde o aborto é criminalizado, o que faz com que se torne um tabú, uma tragédia, uma trajetória cruel de excessiva solidão e vulnerabilidade para quem o vive. Perante um Estado e uma sociedade que nos cerca, a solução possível é coletiva e, nessa coletivização, a alegria surge como uma força política incontestável.