Filho de um francês com uma brasileira de Minas Gerais, o quadrinista Matthias Lehmann cresceu em Paris, mas passou boa parte das férias em visitas à família em Belo Horizonte. Conhece bem a cultura da capital mineira e, sobretudo, a história do Brasil. Desde pequeno, conviveu com as memórias da mãe e, a partir de suas próprias experiências, Matthias criou um universo de lembranças fundamentais para o livro Chumbo, que a editora Autêntica publica pelo selo Nemo. "Minha mãe chegou na França há mais de 40 anos e sempre teve muita saudade do país, da família, então ela quis transmitir essa cultura para mim e minhas irmãs assim como a língua", conta o quadrinista, que tem 45 anos, nasceu em Meaux, cidade a pouco mais de 50km de Paris, e é autor de nove histórias em quadrinhos publicadas na França.
Sobrinho do escritor Roberto Drummond, conhecido pelos romances Sangue de Coca-Cola e Hilda furacão, Matthias trouxe para Chumbo uma inspiração bastante familiar. O livro trata da ditadura militar instalada no Brasil em 1964 a partir do olhar de uma família. Proprietário de uma mineradora, o patriarca inspirado numa versão fantasiada do avô do autor protagoniza a primeira parte do livro, que se passa nos tempos de Getúlio Vargas. Industrial poderoso, Oswaldo Wallace transita com certa arrogância pela aristocracia mineira. É um período de conspirações tenentistas, paranoias comunistas e um autoritarismo contraditório.
Com o passar dos anos e o suicídio de Getúlio, o país muda, Juscelino Kubitschek emerge em uma Belo Horizonte efervescente e surge nas páginas dos quadrinhos. A construção do Complexo da Pampulha, as noites na Casa de Baile e a agitação do Café Palhares aparecem na HQ em um traço nostálgico e, eventualmente, sombrio e carregado, sempre em preto e branco. Oswaldo envelhece, empobrece e os filhos, Severino e Ramires, crescem com visões de mundo absolutamente antagônicas. Um se envolve com os movimentos de esquerda, o outro apoia os militares.
Entre as três irmãs, também há divisões quando o pai morre e a mãe precisa se desfazer dos bens da família para sustar as dívidas. Nesse cenário, as discussões são constantes e rusgas do passado ressurgem na figura de Iara, uma militante negra cujo pai havia liderado uma greve na mineradora de Oswaldo e, por isso, havia sido torturado. É um Brasil profundo, mas muito atual, que o autor traz para os desenhos. "De certo modo, a eleição do Bolsonaro foi importante para fazer esse livro. Na minha cabeça, eu sabia que queria fazer um livro inspirado na família da minha mãe, especialmente dos meus tios, que tinham esse antagonismo. E como tinha essa tendência revisionista durante o Bolsonaro, e mesmo antes com o processo de impeachment da Dilma, que era o começo de tudo, acho que foi um momento político muito forte", explica Matthias.
Dimensão absurda
O momento contemporâneo também era adequado para revisitar a ditadura a partir da perspectiva dos membros de uma família. A eleição de Jair Bolsonaro e a dimensão absurda de muitas das declarações do ex-presidente levaram o Brasil para um lugar da mídia francesa que o país raramente ocupou. "Na França, a imagem do Brasil é a de um país de festa, futebol e samba. Isso existe, mas o Brasil não é só isso. E eu tinha vontade de falar de um outro país", conta o autor. "Quando o Bolsonaro chegou, foi um dos raros momentos em que as mídias francesas falaram da política brasileira, porque o Bolsonaro fazia aquelas besteiras. Então, tinha uma curiosidade dos franceses para saber como ele chegou onde chegou."
Como a história familiar também abria um farol sobre a ditadura, Matthias decidiu trazer para a HQ os momentos de autoritarismo político que marcou boa parte do século 20, com Getúlio Vargas, o golpe militar e a ditadura. "Era um assunto que me preocupava muito. Eu queria saber o sentimento do que é esse momento de um golpe, como a vida muda. Quando era adolescente, eu tinha essa visão romântica de que, quando acontece, é uma coisa muito espetacular . Conversando com as pessoas, você entende que as coisas não acontecem assim e sim de forma progressiva. E me interessava mostrar como as relações dentro do núcleo familiar podem evoluir por causa disso", diz.
Admirador de quadrinistas como Robert Crumb e Art Spiegelman (especialmente de Maus), Matthias é dono de um traço mais sujo e pesado, marcado pela inquietação. O livro foi lançado na França em setembro de 2023, mas não traz as particularidades de linguagem do roteiro da edição brasileira, um detalhe que os tradutores Fernando Scheibe e Bruno Ferreira Castro souberam imprimir no texto em português. "Esse sotaque não está registrado na versão francesa porque, obviamente, não tem equivalente. Enquanto estava escrevendo pensava em expressões brasileiras, em como traduzir, e o tradutor fez o caminho inverso do que eu tinha feito", lembra o autor, que escreve de modo muito intuitivo e decidiu confiar no leitor francês ao imaginar o alcance da história de uma família mineira durante a ditadura no universo dos quadrinhos franceses. "E a recepção foi muito boa. O livro tem um certo sucesso nas livrarias. As pessoas me falam que descobriram muita coisa sobre o Brasil. E algumas, depois de ler, vão fazer pesquisa e procurar outras coisas", garante.
Na França, Chumbo ficou entre os cinco finalistas do Grand Prix de la Critique da Associação de Críticos e Jornalistas das Histórias em Quadrinhos e fez parte da seleção oficial do Festival Internacional de Histórias em Quadrinhos de Angoulême (FIBD), o mais importante da França quando se trata de HQs.