Enquanto o homem mais podre de rico do mundo se diverte explodindo espaçonaves, Juliana Linhares canta que não quer ir pra Marte. Prefere o Ceará. Pois da potência Nordestina emerge a ficção mais realizada e, ainda assim, sempre um passo à frente da vanguarda brasileira. Rebelde e brincante, uma boneca imanipulável no Festival de Bonecos de Todo o Mundo, lotou por completo a sala do Teatro Yara Amaral, no Sesi de Taguatinga Norte (DF), no sábado passado (16/3). Até os corredores ficaram tomados de pessoas em pé, que dançaram boa parte do espetáculo. A cantora potiguar faz refletir e saltar de alegria, com repertório baseado no álbum Nordeste Ficção, uma obra-prima que celebra três anos e, certamente, merece lugar cativo na história da MPB.
Sobre o palco, Juliana Linhares tem uma atitude rock, rapper (repentista), canta de peito aberto verdades e absurdas emoções. Com dotes de apaixonada atriz, além de mirabolante e poética dançarina, traz voz potente que reúne técnicas líricas e sertanejas para hipnotizar a plateia, enquanto desvela o ritual acompanhada pela guitarra trovejante e programações futuristas de Elisio Freitas; pelos melódicos solos de flauta e clarineta de Aline Gonçalves; e pelo ritmo enérgico e preciso da bateria de Ticho Lavenère — um improvável herói da noite, pois assumiu as baquetas em caráter emergencial, após um inesperado acidente com o baterista original. Apesar dos poucos ensaios, deu muito bem conta do recado — aprovado com louvor.
Carismática, nos intervalos entre uma ou outra canção, Juliana Linhares conversa com o público, conta causos e histórias curiosas — como sobre a inédita gravação da letra original da faixa Aburguesar, de Tom Zé. Atenta aos métodos modernos de distribuição de produções musicais, também convida a plateia a conhecer os canais on-line. De fato, algo indispensável, pois os produtos audiovisuais que executa são soberbos, muito bem elaborados, com coreografias impactantes e repletos de participações especiais, como Chico César, Letrux, Zeca Baleiro, Caetana (primeira cantora trans a gravar frevo), entre outras.
É reconfortante saber que enquanto se atravessa uma fase de despedida de grandes nomes da música brasileira, uma nova estrela surge com elegância e substância para sustentar um ancestral legado artístico, mas também lança luzes de criatividade e reconfigura com rara inteligência o cancioneiro nacional. Quem deseja experiências de beleza e profundidade deve acompanhar os passos de Juliana Linhares, que, apesar da juventude, parece conhecer os caminhos que levam à catarse.
Vigorosa, após atender aos pedidos de bis, com o seio à mostra, deixou o público amamentado pela esplêndida arte que lhe jorra d'alma. Ao fim do show, não havia uma pessoa sequer que não estivesse exultante pela apresentação que acabara de contemplar. Maria das Graças, cearense, 76 anos, em Brasília desde o início da década de 1970, mostrava certa perplexidade, mas saiu de casa após três meses de luto pelo marido — a convite do filho— e se disse surpresa e satisfeita. Flávia 'Fada', ilustre personalidade da boemia musical taguatinguense, sorria exuberante, como de costume, e também elogiava a cantora que deixou o teatro em estado de êxtase coletivo. E mesmo no banheiro masculino, enquanto jogavam um pouco de água na cabeça para refrescar o calor, os amigos se olhavam no espelho e se julgavam homens mais belos, após o privilégio de apreciar um show tão arrebatador. Uma noite feliz regada à diversidade cultural... Volte logo, Juliana Linhares! Obrigado, Festival Bonecos de Todo Mundo!
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