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Indicado ao Oscar, novo filme de Wim Wenders é enigmático e profundo

'Dias perfeitos', último filme de Win Wenders, é, ao mesmo tempo, singelo, belo, trivial, profundo e transcendente.

 2024. Divirta se Mais. Filme Dias Perfeitos. -  (crédito:  O2 Play)
2024. Divirta se Mais. Filme Dias Perfeitos. - (crédito: O2 Play)

Singelo e belo talvez seja uma dupla adjetivação simples e óbvia demais para definir o último filme de Wim Wenders. Mas Dias Perfeitos é isso mesmo: singelo e belo, muito embora por trás da trivialidade do enredo se esconda algo transcendente e profundo, como, entre outras, as imagens em preto e branco do sol que se insinua por trás da folhagem das árvores. A princípio enigmáticas, quase esotéricas, elas são alegóricas e dizem respeito à essência mesma do que Wenders quis dizer ou quer dizer com o seu filme. Essas imagens/seqüências recorrentes se repetem ao longo de toda a narrativa. A gente pode falar sobre elas mais adiante. O importante agora é lembrar que Dias Perfeitos foi indicado pelo Japão para representar o país no Oscar de 2024, foi um dos filmes mais aplaudidos quando exibido na última edição do Festival de Cannes, onde seu protagonista, Kôji Yakusho, ganhou o prêmio de melhor ator. Justíssimo, para dizer o mínimo. Quando apresentado nos festivais, alguns críticos lastimaram o ritmo lento, segundo eles, “inadequado para todos os públicos”.

Dias Perfeitos se move como as nuvens no céu. Lentas, efêmeras, fugidias, passageiras. "As coisas não deviam mudar”, diz Hirayama (Yakusho) num determinado momento. Ele é um passadista. Ouve música em fitas cassetes, faz fotos com máquinas analógicas, frequenta sebos de livros, de discos de vinil e de cassetes, além de bares e restaurantes triviais. O filme tem como uma clara referência A Rotina Tem Seu Encanto, uma das obras-primas de Yasujiro Ozu, verdadeiro poema sobre a conformidade e transcendência da resignação e do banal. Em Dias Perfeitos, ao contrário, há um desassossego, ausente em Ozu, e que só vai se manifestar depois da segunda metade da narrativa. É quando começamos a conhecer melhor a personagem de Hirayama, o minucioso e solitário funcionário de limpeza de Tóquio. Hirayama ganha a vida higienizando os belos – inclusive do ponto de vista arquitetônico – banheiros públicos da capital do país.

Hirayama não fala, ou quase não fala até mesmo com seu companheiro de trabalho. Numa das vezes, se comunica com um sujeito ausente através de um “jogo-da-velha”. O indivíduo deixava cabalisticamente a sua jogada, rabiscada num papelzinho metido numa fresta de um dos aparelhos sanitários. Hirayama acha o papel e dá sequência ao jogo, no que é acompanhado pelo seu “competidor”. Afinal, quem é Hirayama? Nós o vemos em seu espaçoso e espartano apartamento, despido de móveis, com uma prateleira ao longo de uma das paredes do cômodo principal, repleta de cassetes, livros e o que parece ser fitas de VHS ou DVDs. Wenders segue acompanhando o cotidiano de Hirayama no trabalho e fora dele de diferentes ângulos e maneiras. Seu meticuloso ritual de asseio, aparo do bigode e o cuidado com seus pequenos vasos de plantas. Hirayama se levanta pela manhã bem cedo antes do sol nascer. Do lado de fora da casa, invariavelmente observa o céu, dirige-se à máquina de bebidas onde retira um copo de café gelado. Dentro de sua pequena van utilitária, introduz uma de suas fitas cassetes no aparelho do veículo e parte para a sua ação cotidiana.

As músicas que ouve, todas de repertório anglo-saxão (com exceção de uma única japonesa), são para Hirayama uma forma de escape. Um destaque, obviamente, é Perfect Day, de Lou Reed, uma natural inspiração não só para o título do filme, como também, através dos seus versos, comenta a placidez da primeira metade do filme, quando a vida do protagonista segue modesta e calma. Outras como The House of The Rising Sun – um motivo folclórico de Nova Orleans gravada por Woody Guthrie, Joan Baez, Bob Dylan, The Animals, entre tantos outros – e Sunday Afternoon, dos Kinks, já exprimem o desassossego experimentado na última parte do longa-metragem.

Wenders é um amante do pop/rock. O rock, e a cultura norte-americana de um modo geral, são (ou pelo menos foram) para Wenders também um escape. Ambos se contrapunham à desoladora paisagem do pós-guerra na Alemanha de sua juventude. A perda de referências urbanas está expressa em Asas do Desejo na cena em que um senhor caminha sobre as ruínas de Potsdamer Platz, em Berlim, aponta para os lados, nomeando os famosos cafés, restaurantes, linhas de bondes que já não existem mais. Enfatiza a agitação da grande metrópole antes da Segunda Grande Guerra. A perda de referências está também expressa na cena em que Hirayama pergunta a um passante se não era ali, onde vemos um terreno limpo, que existia um determinado prédio agora demolido. “As coisas não deviam mudar”, lembram-se?

O efêmero na vida, o mal-estar existencial, está presente e representado no nomadismo das personagens de Alice nas Cidades e Paris-Texas, por exemplo. O escape – ou a fuga dos valores socialmente constituídos – no primeiro dos filmes citados é o transitório das estações de trem. No segundo, é a alegoria do deserto, este não-lugar onde não se cria raízes nem identidades – com a exceção dos beduínos e tuaregues, sem qualquer intenção aqui de fazer graça ou ironia. Qual seria então o escape de Hirayama, além das músicas de suas fitas cassetes? Hirayana tem o hábito de tirar fotos analógicas em preto-e branco das árvores da pequena praça onde descansa todos os dias no horário de almoço. As fotos são sempre de baixo para cima, em contra-plongé, capturando os raios de sol por entre as folhagens. No Japão existe uma expressão, Komorebi, muito utilizada na poesia, que significa o exato momento em que um feixe de luz se descortina diante de nossos olhos, quando os raios de sol atravessam uma folhagem, por exemplo. É nesse momento que os indivíduos são transportados para uma viagem interior, num movimento de descoberta e entendimento do seu próprio ser.

Hirayama seleciona as fotos que lhe parecem melhores e as guarda cuidadosamente em caixas que deposita no armário. As fotos que vemos no filme, ao que parece, foram feitas pela mulher de Wenders, a artista visual Donata Wenders. Ela é a responsável pelos fragmentos dos filmes experimentais que vemos nos sonhos de Hirayama. As imagens emulam o impressionismo onírico/psicanalítico da artista norte-americana Maya Deren. Elas são em preto e branco, como se subvertessem a lógica da caverna de Platão. Hirayama prefere a representação do insondável, do gasoso. Rejeita a conformidade e o compromisso, manifesto no repentino aparecimento de sua irmã e de sua sobrinha. Ela, a sobrinha, intui o mesmo tipo de não comprometimento, por isso sua afeição por Hirayama. A jovem quer fugir dos valores sociais supostamente atribuídos a ela. A irmã, a sobrinha e a dona do restaurante por quem Hirayama tem afeição iluminam o conflito até então oculto do filme. A fuga das identidades como atavismos ou atributos pré-determinados é um tema recorrente em Wenders, temática herdada de Antonioni, um de seus pais espirituais. Lembramos de Profissão: Repórter. A fuga de Hirayama, ao contrário daquela do personagem de Jack Nicholson, se dá no mesmo lugar, no mesmíssimo lugar, no seu micro mundo, uma fuga fruto do choque entre a permanência e a impermanência das coisas.

Por Sérgio Moriconi

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postado em 08/03/2024 15:29 / atualizado em 08/03/2024 16:14
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