Em boa hora a editora Cobogó lançou a coletânea sobre arte de Paulo Sérgio Duarte, No mundo sem chão: escritos sobre arte, organizada por Sérgio Martins — textos sobre artistas brasileiros, como Antônio Dias e Tunga (amigos diletos), Iole de Freitas, Waltércio Caldas, Carlos Vergara, Jorge Guinle, Lygia Clark, Elizabeth Jobim, entre outros — e estudos sobre arte de forma ampla, além de entrevista exclusiva para o livro feita por Fred Coelho, Iole de Freitas, Luísa Duarte, Luiz Camillo Osório e Sérgio Martins.
Paulo Sergio é crítico e curador, também atuou em diversas instâncias da administração pública, no Rio de Janeiro — arte, cultura e educação. Sem falar em instituições de ensino, em particular na Universidade Cândido Mendes. É no ateliê dos artistas, entretanto, que Paulo Sérgio baliza as reflexões que transbordam desse esplêndido recogido, para usar uma expressão em espanhol, afeitas ao fluxo diário das coisas e gestos e antenadas com uma certa suspensão dos sentidos contingencial de nossas existências terrenas.
A escrita do crítico, para manter o viço da palavra no dia a dia da linguagem, tem de procurar uma linha imaginária de transgressão, o mundo sem chão – sem perder, digamos, a compostura.
"Você sabe, o segredo do ceramista (no Japão) é fazer seus objetos pela primeira vez a cada vez. Cada dia, ele está fazendo tudo pela primeira vez. E ele não está pensando em como fez ontem, nem em como fará amanhã. Ele está sempre fazendo no momento. Esse é o segredo do ceramista. E é isso que dá uma dignidade totalmente diferente a qualquer repetição".
A sentença acima é de Wim Wenders, para explicar como imaginou seu personagem em Dias Perfeitos, de 2023. O crítico também é, a seu modo, um ceramista — constrói seus objetos despidos das eloquências performáticas, numa busca por excelência que se consome no instante mesmo em que é delineada. Ele se reinventa a cada dia, sem dramas: cada artista é um mergulho, um momento. Como se nunca tivesse feito isso antes, torna-se sempre algo diferente.
Seguindo a trilha japonesa, outro traço das críticas de Paulo Sérgio passível de analogia é a apresentação que Bill Evans escreveu na capa do formidável Kind of Blue, de Miles Davis. O texto começa desse jeito:
Existe uma prática na arte visual japonesa em que o artista é forçado a ser espontâneo. Ele deve pintar sobre um pergaminho fino e esticado, com um pincel especial e tinta preta à base de água.... e adotar uma disciplina particular, a de permitir que a ideia se expresse em sintonia com suas mãos, de maneira tão direta que nada possa interferir.
A mão do crítico reproduz o rigor da improvisação do jazz, capturando assim alguma coisa nos trabalhos que escapa às explicações que circulam nos vasos comunicantes. Tal como no disco, cujas arranjos melódicos foram concebidos por Miles horas antes das gravações, o texto resultante, pela sua ação direta, acaba configurando, como disse Bill Evans, a “reflexão mais significativa” do material.
No equilíbrio entre reinvenção e improvisação, aparece, em algum lugar, a mirada de Paulo Sérgio Duarte.
Boa leitura!
Escrito por João Lanari
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