Música

Biografia conta a vida de Nelson Freire, virtuose brasileiro do piano

Em biografia sobre Nelson Freire, o jornalista francês Olivier Bellamy fala sobre a morte e a sexualidade de um dos maiores pianistas brasileiros

Nelson Freire: vida marcada por turbulências existenciais -  (crédito:  PASCAL GUYOT)
Nelson Freire: vida marcada por turbulências existenciais - (crédito: PASCAL GUYOT)

Foi uma pequena confidência de Nelson Freire ao técnico de som da Deca, durante uma gravação, que fez o jornalista Olivier Bellamy embarcar na biografia do pianista brasileirio. "Ele disse que não queria ser esquecido", conta o francês, que acaba de lançar Nelson Freire — O segredo do piano. Publicado no Brasil pela DBA, o livro traz um texto bastante afetivo e é, como diz o autor, mais um retrato do que uma biografia detalhada.

Quando Nelson morreu, em novembro de 2021, Bellamy decidiu se debruçar sobre os próprios arquivos e dar início a um livro semelhante ao que havia feito sobre a pianista argentina Martha Argerich. Jornalista colaborador de periódicos dedicados à música, como Classica e Revue des deux mondes, apresentador na Radio Classique e em programas de televisão e autor de Le petit dictionnaire amoureux de Chopin (O pequeno dicionário amoroso de Chopin), o escritor achou natural trabalhar em um perfil afetivo.

A amizade com Nelson, além de longas entrevistas com amigos, familiares e pessoas próximas complementaram o material que Bellamy acumulou como repórter. Boa parte das histórias são conhecidas, especialmente as da infância de Nelson e dos primeiros anos de estudo no Rio de Janeiro, mas outras são extremamente privadas e jogam luz sobre a intimidade do pianista, uma figura reservada e que, durante a vida, sempre evitou entrevistas e exposição.

A sexualidade de Nelson Freire é um dos tabus que Bellamy não chega a destrinchar, mas que não evita nem contorna. O outro é a morte do pianista, cujo corpo foi encontrado ao pé de um desfiladeiro próximo à casa no condomínio onde passou a morar, no Rio de Janeiro, pouco antes da pandemia. "São dois tabus que eu quebrei. Assumo totalmente, mas fiz isso conscientemente. Para mim, um livro é a liberdade absoluta do autor. Se não quiser chocar, melhor não escrever", avisa Bellamy.

Sobre a homossexualidade, o autor conta que Freire sempre a viveu abertamente entre os amigos, mas não ficou nada contente quando o tema apareceu em Martha Argerich — L'enfant et les sortilèges, a biografia de Bellamy sobre a pianista argentina. Freire pediu ao autor que retirasse o trecho. Na época, o francês atendeu ao desejo do amigo. "Mas agora, eu o traí. É verdade. Ele não queria e acho que isso é uma questão de gerações. E eu entendo, quando se trata da sociedade brasileira, da família, mas todo mundo sabia. Hoje, muita água correu, e a homossexualidade não é mais um tabu. E isso era essencial na personalidade dele", conta. "Eu sou homossexual e, embora não alardeie isso, eu não gostaria que apagassem da minha biografia, isso faz parte de mim, da minha alma. E Nelson vivia isso muito livremente, não era um segredo guardado à chave."

A morte de Nelson Freire é outro trecho delicado do livro. O pianista, que passou boa parte das últimas décadas em Paris, havia decidido voltar para o Rio de Janeiro em 2019, onde foi ficando entre uma apresentação e outra. No mesmo ano, quebrou o ombro direito após um tombo durante uma caminhada no calçadão da Barra da Tijuca. O acidente limitou os movimentos e deixou o pianista aterrorizado com a possibilidade de a mão direita não funcionar mais como antes. Durante a pandemia, teve outra queda e quebrou a mão esquerda. Também perdeu alguns de seus amigos mais queridos e passou por uma séria depressão durante a qual sinalizava, muitas vezes, a vontade de morrer. Dizia que, um dia, os dois amigos com os quais morava, Bosco e Miguel, o encontrariam ao pé do barranco, o que acabou por acontecer em uma noite no início de novembro.

Na época, a causa da morte do pianista foi ventilada em alguns dos obituários, mas pouco se sabia, até porque amigos e familiares evitaram falar. A própria Martha Argerich teria pedido a Bellamy que evitasse o tema. "Mas eu acho que saber que ele cometeu o irreparável alimenta a lenda mais do que saber que ele morreu na cama como qualquer outra pessoa. Eu me ancorei na liberdade da literatura e na minha relação com Nelson, isso diz respeito a mim e à minha consciência", explica o autor. "Chocou algumas pessoas e compreendo muito bem, mas ninguém é obrigado a ler o livro."

Para além dos dois tabus, o perfil feito por Olivier Bellamy é também uma investigação apaixonada pelo talento excepcional do pianista. Os anos entediado em Viena, que o próprio Nelson dizia não ter aproveitado o suficiente, a amizade com Martha Argerich, a morte trágica dos pais em um acidente de ônibus, a necessidade da conexão afetiva com as professoras, especialmente Nise Obino, para realmente poder se ligar à música, a admiração desmesurada por Guiomar Novaes, as implicâncias, o bom humor e o senso da comédia, a escolha do repertório (sempre espelhado no de Guiomar), Bellamy consegue reunir uma coleção de histórias que ajudam a entender a simplicidade ao mesmo tempo pueril e complexa de Nelson Freire.

 

Nelson Freire — O segredo do piano

De Olivier Bellamy. Tradução: Julia da Rosa Simões. DBA, 230 páginas. R$ 74,90

Entrevista//Olivier Bellamy 

Sobre a morte, à qual você dedica um capítulo do livro: quais foram as condições que você se impôs?

Isso era essencial para compreender o artista e a lenda que Nelson se tornou. Dito isso, eu conto como tudo aconteceu. E, aliás, ninguém pode ter certeza de nada, é possível que ele tenha, por exemplo, escorregado. Há sempre um mistério em torno disso, porque ninguém viu. Mas podemos ler nas entrelinhas e compreender muito bem o que aconteceu, já que eu não minto. Para mim, é uma tragédia e, desde o início, podemos ler desse jeito. O fim do livro está no início e acho que seria apagar o destino de Nelson não contar o que houve.

Como teve acesso às informações e a detalhes nem sempre públicos da vida de Nelson Freire?

O pai dele escreveu um livro e Bosco (amigo de Nelson) leu para mim alguns trechos. Nós conversamos bastante. Fui ao Rio vê-lo duas ou três vezes. E o convidei para tocar no festival de Ramatuelle, que organizo. Nós tínhamos uma relação, posso dizer que o conhecia. Assim como conhecia todos os amigos dele e eles confiaram em mim. É apaixonante descobrir a vida de alguém e dar forma a isso, fazer algo que seja interessante e bonito, que tenha um certo valor e que seja digno do grande artista que ele era.

 

Qual foi o maior desafio?

Que o texto se sustentasse, que ele fosse eu e fosse ele também. Escrever um livro é um investimento e eu tenho uma única obsessão: que se pareça com ele e que, quando seus amigos o lerem digam para si mesmos "é ele".

 


  • O jornalista francês Olivier Bellamy, autor de biografia sobre Nelson Freire
    O jornalista francês Olivier Bellamy, autor de biografia sobre Nelson Freire Foto: Éditions Fugue
  • Escritor e jornalista francês Olivier Bellamy, autor de Nelson Freire - O segredo do piano, biografia de Nelson Freire
    Escritor e jornalista francês Olivier Bellamy, autor de Nelson Freire - O segredo do piano, biografia de Nelson Freire Foto: Arquivo Pessoal
  • Livro Nelson Freire - O segredo do piano, de Olivier Bellamy
    Livro Nelson Freire - O segredo do piano, de Olivier Bellamy Foto: DBA Editora
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postado em 05/02/2024 11:00 / atualizado em 05/02/2024 11:17
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