A partir deste ano, os leitores poderão escolher as mais variadas edições dos romances de Graciliano Ramos. A obra do escritor alagoano entrou em domínio público desde 1º de janeiro e as editoras se preparam para lançar novas edições ao longo dos próximos anos, incluindo a publicação de inéditos. As primeiras a chegarem às prateleiras das livrarias são o infantil Os filhos da coruja e o romance Angústia, ambos editados pela Todavia.
O primeiro sai pelo selo Baião e traz um texto inédito, um poema escrito em 1923 sob o pseudônimo J. Calisto, com o qual o autor assinou outros escritos no início da carreira. Nos versos, uma coruja pede ao amigo gavião que não coma seus filhotes. Para ajudar a identificá-los, descreve os filhos de forma idealizada. Quando o gavião encontra uns filhotes feiosos, come, já que os da coruja eram lindos, segundo a descrição. O gavião, no entanto, acaba por despedaçar a família. O poema teria como inspiração uma fábula de La Fontaine. "Graciliano dá ênfase não para as aves, mas para os filhos que vão sofrer", explica Thiago Mio Salla, que tem doutorado na obra do alagoano e é o editor responsável pelo projeto de reedição na Todavia. "É uma fábula baseada na matriz do La Fontaine, mas bem territorializada, pensando no Brasil e no Nordeste. E tem uma moral própria. A expressão mãe coruja vem dessa fábula e ele questiona esse lugar de defesa da mãe."
O poema foi escrito quando Graciliano ficou viúvo e sozinho com os quatro filhos. Para o editor, o texto é também uma reflexão sobre esse momento na vida do autor. O livro traz ilustrações de Gustavo Magalhães e faz parte do projeto de Salla de vasculhar e publicar textos inéditos, apesar da resistência da família, que sempre respeitou o pedido feito por Graciliano de nunca publicar os inéditos, pois ele mesmo questionava a qualidade. Ainda este ano, a Todavia vai lançar São Bernardo e Cartas inéditas. A intenção é publicar, anualmente, dois ou três livros.
Em Angústia, um posfácio de Antonio Cândido reúne textos escritos para a coluna Notas de crítica literária que publicava no Diário de S. Paulo, na época em que o romance foi lançado. O crítico dedicou uma série de cinco textos ao autor. "Isso nunca foi publicado em livro. E permite conhecer a opinião dele no calor da hora", explica o editor. A base para a edição da Todavia foi a quarta edição, revisada pelo próprio Graciliano. "Tem todo um trabalho de revisão crítica de base, mas essa edição crítica é mais para um público acadêmico especializado. Então, o que a gente manteve foram coisas mais substantivas, mais pronunciadas, que permitem ao leitor acompanhar o laboratório de criação do Graciliano. Esse tipo de trabalho nunca foi realizado", garante Salla.
No Brasil, a lei determina que um autor entra em domínio público 70 anos após sua morte. A partir daí, as editoras podem publicar sem pagar direitos autorais aos herdeiros. Graciliano morreu em março de 1953 e, até 2023, a editora Record detinha os direitos da obra do romancista. Foram vendidos mais de 2 milhões de exemplares de Vidas secas, considerada a obra-prima do autor, durante esse período.
A Companhia das Letras também prepara novas edições, que começam a sair em fevereiro pelo selo Penguin. Angústia, Vidas secas e São Bernardo são os primeiros. Ainda este ano, também está previsto Memórias do cárcere. "Preferimos trazer o Graciliano para a Penguin porque é bastante acessível, com preço de mercado mais baixo, e porque a Penguin tem um rigor editorial que dialoga tanto com acadêmicos quanto com alunos de vestibular", explica a editora Stéphanie Roque.
A pesquisadora Ieda Levensztayn, da Universidade de São Paulo (USP), ficou responsável pelo posfácio de Vidas secas, enquanto a crítica Luciana Araújo Marques ficou com Angústia e Paulo Massey, professor do Instituto Federal do Ceará, com São Bernardo. "São três posfácios bastante interessantes porque não só dão uma introdução da obra, mas também trazem um aporte analítico. São quase artigos acadêmicos, sem ser acadêmicos", diz Stéphanie. Além dos novos posfácios, as edições trazem textos introdutórios de entrevistas em que Graciliano Ramos fala sobre as obras. "No Vidas Secas, ele faz o comentário, é um texto curto, mas ele dá a percepção dele sobre o livro. E no São Bernardo, ele fala do Paulo Honório, protagonista, que ele julgava o pior tipo de pessoa", diz a editora.
Em casa
O Grupo Editorial Edipro também embarcou na reedição de Vidas secas e Angústia, que chegam pelo selo Via Leitura, com prefácio da escritora Micheliny Verunschk. Na apresentação, a autora de O som do rugido da onça, premiado com o Jabuti, faz paralelos entre a obra do alagoano e o cinema. Em Vidas secas, o paralelo é com o filme Na ventania, do diretor estoniano Martti Helde, sobre a deportação de um povo para um campo de trabalhos forçados durante a Segunda Guerra. "O diretor coloca esses personagens imobilizados diante da história, não só da narrativa, mas de grande história", explica a autora. Em Angústia, o prefácio traz o romance para uma comparação com Encaixotando Helena (Jennifer Chambers Lynch). "Faço uma aproximação de Graciliano com essa contemporaneidade por meio do olhar cinematográfico, que tem muito a ver com minhas escolhas como escritora e com meu próprio olhar para o mundo. A gente acaba se projetando", explica Micheliny.
Na editora Record, que é a casa de Graciliano Ramos, responsável por manter a obra em circulação nas últimas décadas, os romances Angústia, Vidas Secas e São Bernardo foram reunidos em um box com prefácio do crítico e professor Ivan Marques.
Olhar biográfico
A vida de Graciliano Ramos também ganha foco num momento em que o mercado se enche de reedições. A história do autor para além do romancista é tema de Graciliano romancista, homem público, antirracista, do pesquisador Edilson Dias de Moura, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP). É sobre a vida pública do autor que Moura se debruça, especialmente sobre o viés político e ativista do alagoano, que foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL), defendeu e tentou implantar o ensino laico, lutou pelo aumento da quantidade de crianças negras nas escolas e pela profissionalização do magistério. Foram ações que incomodaram o Estado Novo e motivo para que Graciliano fosse afastado do cargo e preso, em 1936.