Cinema local

Com vocação e fôlego, o cinema candango bate na tela de 2024

O vazio de domingo à tarde, de Gustavo Galvão, Servidão, de Renato Barbieri, Pacto da Viola, de Guilherme Bacalhao, são algumas atrações. Confira o que vem por aí

Um curta-metragem (Xarpi) em fase de finalização e um longa-metragem (Mapas) em fase de edição, ambos assinados pelo diretor Rafael Lobo,  confirmam, em volume, a vocação da cidade para o cinema, aquele que se renova, sem ignorar a trajetória de estabelecidos cineastas que apresentam (nesta página) seus projetos para 2024.

Mapas traz uma história de mistério que envolve uma professora da UnB e um mestrando, que examinam um desaparecimento, enquanto Xarpi trata da autonomia de uma pichadora da periferia inserida em ambiente fantástico. "São filmes que conceitualmente abordam seus temas a partir de um diálogo com o gênero de horror, num plano de desenvolvimento, que, mesmo indiretamente, tratam da cidade de Brasília. No curta, há a relação entre o centro e a periferia, num pano de fundo. Já  Mapas estabelece também um paralelo com a história da cidade — a partir de uma personagem desaparecida, se desvenda mistério com construtores da capital, quando se vê a história submersa de Brasília, no tratamento da Vila Amaury (região pioneira submersa pelo Lago Paranoá)", adianta Rafael Lobo.

Fertilidade

A quantidade de filmes locais que vão circular, promete ser grande para 2024. Gustavo Galvão lançará nos cinemas os dois longas que participaram de festivais em 2023, O vazio de domingo à tarde e Inventário de imagens perdidas. Em coprodução internacional junto ao Chile, estendida ainda pelo desejo de carreira internacional para o longa Sangue do meu sangue (atualmente em montagem), a diretora Rafaela Camelo trabalha na "desafiadora missão" do primeiro longa. "O longa, sobre a amizade entre duas meninas, traz temas transversais, com espaço para o feminino e a diversidade. A maior parte da equipe, num dado extra-filme de bastidor, foi predominantemente de mulheres. Na tela, falamos de crescer, viver a vida e, ainda, do fim dela. Há aspectos de mortes enfrentadas ao longo da vida no roteiro", conta Rafaela Camelo. A diretora traz o otimismo da estreia, num filme feito em Sobradinho, Taguatinga e Plano Piloto, e que traz Camila Márdila no elenco; mas ainda assim, carrega preocupações do cinema local. "Apesar das adversidades, não estamos parados, mas todos torcemos pela volta do FAC audiovisual. Ausente pelos últimos três anos, o impacto desta lacuna estará logo à frente", pontua.

Bala na agulha

"O panorama é muito delicado para a produção local. Mesmo com o termômetro das inscrições aumentadas na Mostra Brasília, sabemos do caráter mambembe de algumas daquelas produções. Claro que a demanda do cinema de Brasília não é mais a mesma de 10, 15 anos atrás. O cinema periférico marca presença intensa. Isso, aliás, é reflexo dos projetos de formação e descentralização. Atualmente, há a busca pelas questões identitárias negras, femininas. Noutra via, há pouco aporte reservado à promoção e ao incentivo por parte do GDF. Há, claro, uma pressão legítima para um edital robusto do FAC", acrescenta o cineasta e diretor de fotografia André Carvalheira, o Xará. Aos 52 anos, Xará, pós-graduado pela UnB, com mestrado em pesquisa de cinema tocante à periferia, por sinal, é o atual operário padrão do audiovisual, com intensa participação em projetos de 2024.

Carvalheira esteve na realização do documentário De longe toda a serra é azul, que estreitou a parceria entre os realizadores (e produtores) Neto Borges e Renato Barbieri. Olho Filmes e Gaya Filmes (desses diretores) exibirão, na próxima semana, o longa Servidão, dedicado ao retrato do combate à situação de trabalho escravizado na Amazônia (com narração de Negra Li). "Na pesquisa, conheci trabalhadores escravizados, aliciadores e abolicionistas. O maranhense Marinaldo Santos me impressionou, em especial, por ter sido escravizado em 13 ocasiões e liberto três vezes pela ação de um grupo móvel. Há, ainda, um lavrador e pescador que relatam violências sofridas. Com promessa inicial de um salário de fome, acabou por receber R$ 48, numa absoluta decepção para quem se ausentou de casa no intuito de dar um caderno, uma caneta, um sapato para os filhos. São depoimentos colhidos de viva voz (e que foram estampados na ficção Pureza) e que revelam a gravidade", observa Barbieri, que se mudou para Brasília, em 1996, com o firme propósito de aliar conteúdo com entretenimento, num cinema de "impacto social".

Também fruto da parceria entre Barbieri e Borges, De longe toda a serra é azul integrou a recente 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, cercando a trajetória do indigenista e escritor Fernando Schiavini, sob narração de Caio Blat. "O longa traz a ação de indigenistas da Funai, à época dos anos de demarcação, nas décadas de 1970 e 1980, com avanço, na marra, diante de picadas e delimitações de território de povos originários, como xavantes e craôs", observa Xará.

"Vejo Brasília como uma potência cinematográfica. Temos uma matriz original chamada Vladimir Carvalho, mestre, e cineasta mais longevo em atividade; uma espécie de farol e mentor do cinema brasiliense, junto com a formação de discípulos, ele acolhe o cinema local como um entusiasta, que estimula e gera um ambiente de muita união e diálogo no meio do cinema. Temos a característica da diversidade e da singularidade de um cinema demarcado por muitos gêneros. Assim como em todo o Brasil, temos o sangue do mundo correndo em nossas veias", demarca Renato Barbieri.

Das letras

Depois dos curtas Vestígios e Roteiro para minha morte, o diretor Pablo Gonçalo regressa à realização de filmes com o curta Osmo, com uso de fotografia intimista e feito a partir de adaptação de de conto com 50 anos, assinado por Hilda Hilst. "É da fase em que ela larga a poesia e vai para a prosa. No filme, teremos um fundo beckettiano, tratando de primeira pessoa, tudo com um personagem misógino e monstruoso. Ele faz uma espécie de confissão e trazemos isso partilhado em linguagem audiovisual", explica Pablo Gonçalo.

Ator de filmes como Os residentes e O som ao redor, Gustavo Jahn faz o protagonista que tem aguçado desgosto, ao ver mulhereses dançarem. Rosanna Viegas e atriz Marília Santos (formada pelo CPC de Antunes Filho) completam o elenco. O filme está
em fase de montagem, e abraça uma narrativa em época indefinida recheada de cores saturadas.

Máquina criativa

Peritos e sociopatas, numa série (chamada Réus); e duas ficções centradas em amizade e aprendizados (os longas Ecoloucos e O socorro não virá) estão entre os novos projetos de Cibele Amaral, que conta com parcerias recorrentes, entre as quais Luciana Martuchelli, Fabio Rabin e Claudio Heinrich. "Réus está adiantado e deve entrar na grade da Box Brazil ainda neste semestre, com oito episódios. Já temos quatro episódios montados, falta finalizar mais quatro", conta Cibele.

O socorro não virá, com Cris Paiva, é uma ficção científica, centrada nos bastidores do cinema em que um profissional de poucas conquistas tem relapso e amistoso relacionamento com uma produtora, e zela pelo apoio de Platane, um ser evoluído, criado em realidade virtual. "O Ecoloucos é uma comédia filmada no primeiro semestre de 2022 e que estamos editado. Quando estiver fechado, vamos para uma fase de teste de audiência, ainda neste semestre. O socorro não virá foi filmado no final de 2021, e já está montado", explica Cibele. Ecoloucos retrata executivos nada exemplares que, consumistas, terão que enfrentar um reality para readequação. Victor Leal, Critiana Oliveira e Maria Paula estão no elenco.

Inspiração real

Codirigiu de A flor da idade, exibido na tevê em setembro passado, o diretor Getsemane Silva deve voltar a filmar, ao final de maio. Manual para salvar o país será um longa que estende a trama até 8 de janeiro de 2023. Em pauta na ficção, as oito horas de um sequestro na capital, em 2014, serve por inspiração. "A partir de um delírio, e mirado por snipers, um homem que se diz patriota, com ato extremista, protagonizou um sequestro, e apresentou para autoridades, uma lista de pedidos inexequíveis", conta Getsemane.

Com previstas cinco semanas de filmagem, a partir do uso do Fundo Setorial (da Ancine), o longa ficará pronto até dezembro. "Muitos projetos audiovisuais se avolumaram a partir da pandemia, a ponto de montar uma equipe brasiliense de cinema ficou difícil. É preciso que o Fac volte a funcionar, até por questões legais: sem sustentabilidade, a produção local pode parar. Noutra via, percebo uma certa desconexão entre o que é produzido e os anseios do mercado exibidor — é algo que nem cota de tela não resolve", pontua, atentando para reajuste de produtos a demandas.

Notas de discórdia

A relação forte exame entre a tradição da Folia de Reis e o reencontro de um pai e filho formulam a trama do primeiro longa de Guilherme Bacalhao, Pacto da viola que, montado está na fase de finalização de som. "O filho quer ser cantor sertanejo, e o pai, violeiro, teria feito pacto com o diabo para se tornar ainda mais habilidoso. Pesquisamos muito a oralidade de narrativas", adianta Bacalhao, que há 33 anos reside em Brasília. Wellington Abreu, Gabriela Correa e Sérgio Viana estão no elenco do filme que lida com rezas, habilidade de luthier e ambiente de matadouro. Rodado em Brasília e no interior de Minas Gerais (Urucuia), o longa teve como curiosidade a construção de ter sido um work in progress, com etapas de formatação em festivais de Tiradentes e Florianópolis, além de participações no Chile, em festivais de Viña del Mar e Santiago.

Visão animal

Durante a próxima temporada de seca, o diretor Marcius Barbieri filmará o encerramento para a trilogia em torno dos temas vigia, roubo e morte, com o curta Olho de touro, isso 17 anos depois de conduzir o curta O eixo do homem. "O processo de montagem de outros filmes me engoliu. No novo filme, trago traços da cultura hispânica e de dados folclóricos, com a ressurreição de boi um e com surpresas de identidade para os personagens. Na trama, haverá feitiçaria, passos de flamenco, bumba meu boi e a celebração da vida, no templo da morte — que é a arena da tourada", comenta o diretor. Ator do longa Uma dose violenta de qualquer coisa, Vinícius Ferreira está escalado como protagonista. Poucos objetos em cena e o repassar de uma filosofia de vida deve alimentar o filme, pelo que observa o diretor de fotografia André Carvalheira. Contrapontos entre a dominação do animal pelo homem e estudos de movimentos minimalistas estão na lista de elementos previstos.

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Flávio Oliveira/Divulgação - Cena do filme 'Sangue do meu sangue'.
Rafael Lobo/Divulgação - Projeto Mapas do diretor Rafael Lobo.
Mariah Bittar/Divulgação - Imagens do set do filme "Osmo'.
Reynaldo Zangrandi - O longa 'Servidão' é uma das atrações do Cine Brasília nesta semana.
Cícero Bezerra/Divulgação - Cena do longa 'Pacto da Viola', de Guilherme Bacalhao.
Rafael Lobo/Divulgação - Projeto Xarpi do diretor Rafael Lobo.
34 Filmes/ Divulgação - Cena da serie 'Réus', de Cibele Amaral.
Marcelo Ferreira/CB - 29/09/2014. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. O sequestrador Jac Sousa dos Santos mantém como refém José Aírton de Sousa com bananas de dinamite presas ao corpo no Hotel St. Peter. A polícia aumentou o perímetro de isolamento e acredita que se as dinamites forem verdadeiras, podem destruir três andares do hotel no centro da cidade. CB, 30/09/2014. Capa; CB, 11/07/2016. Cidades, p. 18;