Desconforto, estranhamento e violência são alguns dos substantivos utilizados por Berna Reale para descrever a própria motivação. É um pouco a partir dessa tríade que a artista coloca o próprio corpo à disposição das fotografias e performances que fizeram da paraense nascida em Belém um dos nomes mais contundentes da arte contemporânea brasileira no século 21. Também a partir dessas ideias — desestabilizadoras, segundo a artista — o curador Silas Martí reuniu as obras de Ruídos, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
Com trabalhos produzidos entre 2009 e 2023, sendo o mais recente o inédito Escape, Ruídos convida o espectador a olhar, a partir de uma perspectiva muito subjetiva, para um conjunto de imagens que são também símbolos dos processos de violência e apagamentos que marcam a sociedade brasileira. Vestida tal qual um padre, a artista empurra uma carroça cheia de crânios e ossos humanos na performance Ordinário. Meninas usam coques amarrados com algemas na série Cabeças raspadas, e, próximo ao mercado de peixe do Ver o Peso, a artista aparece nua sobre uma mesa, coberta com vísceras de animais e rodeada de urubus em Quando todos calam, performance responsável por projetar a artista no cenário nacional. Na famosa série Rosa púrpura, um rosto com os olhos tapados por uma mão tenta emitir um grito. Em Palomo, Berna, que também é perita criminal, se desloca pela cidade montada em um cavalo vermelho.
São trabalhos datados de diferentes anos, mas que traduzem o que o curador chama de "quebra da expectativa, da ordem, da harmonia". Um visual pop e colorido que, segundo Martí, remete até mesmo ao barroco, contrasta com a crítica social afiada e o tom de denúncia da precariedade e da violência. Dessa dualidade surge a ideia de ruído utilizada no título da exposição. Os trabalhos, segundo Martí, conduzem a uma sensação de deslumbramento ao mesmo tempo em que falam de morte, desigualdade, assédio e descalabros políticos. "São os dois polos que estamos querendo mostrar: tanto a precariedade, o descalabro e a violência, quanto a questão feminina e a mulher vítima dessa sociedade. A partir daí a gente pensou os trabalhos que refletiam isso", explica o curador.
O tom de denúncia está presente, especialmente quando se trata de violências contra grupos vulneráveis, mulheres, moradores da periferia e populações carcerárias, mas a visualidade contemporânea das cores fortes, quentes, estouradas dá às imagens o que o curador identifica como um ar de teatralidade. São referências à moda e à alta costura, temáticas presentes em algumas das videoperformances da artista, que lembra ser a contemporaneidade um momento de "cores fortes e metalizadas".
Além das fotografias, que fazem parte do processo das performances realizadas por Berna, uma série de pinturas confeccionadas durante a pandemia de covid-19 e algumas esculturas estão em Ruídos. As telas marcam um período durante o qual a artista ficou impedida de realizar as performances. Voltar a pintar, uma técnica à qual não retornava desde os tempos da universidade, foi também uma forma de reencontrar certas temáticas. Ela conta que pretende, no futuro, realizar uma exposição de pinturas a óleo. "As pinturas, que são as obras mais recentes, pouca gente viu. É uma novidade porque elas também refletem esse atrito do corpo da Berna com o público, próprio das performances. A própria pintura é um exercício de fricção sobre a tela metálica e suas camadas", diz Silas Martí.
Uma série de objetos feitos com formas de alumínio para bolo completa a exposição. São pequenas esculturas com desenhos gravados sobre o metal que carregam uma simbologia no contexto de temas tratados pela artista. Ela lembra que é no interior dos bolos que mulheres e familiares tentam enviar armas para dentro dos presídios. "Eu sempre tive bem claro, para mim, que eu gostaria de abordar o coletivo, meu foco sempre foi esse. Se as pessoas têm essa interpretação? Espero que sim, mas cada espectador tem sua leitura", acredita a artista. Para ela, o que interessa na linguagem artística é a capacidade de deslocamento contida nesse universo.
Entrevista//Berna Reale
Pode contar como foi o recorte que você e Silas Martí queriam para Ruídos?
Deixei a critério do curador a seleção. Penso que um fator interessante para um artista é aproveitar o convite de uma exposição para colocar seu trabalho sob o olhar do outro e isso pode começar pela escolha do curador, alguém que você acredite que tenha capacidade de fazer um recorte e construir novos diálogos com o que você produziu. Acredito que Silas escolheu trabalhos que conversam entre si para que o público tenha uma percepção do que me interessa como artista e qual a temática central de minha pesquisa .
Quando você olha para esse conjunto de obras com o distanciamento do tempo, consegue criar uma narrativa do que andou querendo falar com a sua trajetória?
Eu sempre tive bem claro que meu interesse era abordar questões coletivas, não me interessa focar em questões pessoais isoladas se elas não representam o que grupos ou partes da sociedade também comungam. Meu foco sempre foi esse. Se as pessoas têm essa interpretação vendo meus trabalhos? Espero que sim, mas cada espectador tem sua leitura.
Que narrativa seria essa? Quais são os pontos de diálogo de todas essas obras?
A violência, silenciosa ou não, mostrada de forma simbólica e com uma estética contemporânea.
Você ainda é perita criminal ou se aposentou?
Além de ser graduada em arte, também sou formada em Perícia Criminal e um Perito Criminal Oficial jamais deixará de ser perito. Depois que se aposenta, o que troca é sua atuação e tipo de vínculo, podendo atuar como um Perito Analista Técnico. Me aposentei oficialmente esta semana, mas a intenção é continuar analisando casos de violência , principalmente de violência contra mulheres, assunto sobre o qual me debrucei nos últimos três anos, onde observei locais de crime contra mulheres. Foram mais de 36 mil imagens e ainda quero continuar pesquisando esse assunto.
Como esse trabalho de perita influenciou a sua produção?
De muitas maneiras.Penso que, depois que me tornei perita, meu trabalho como artista se voltou ainda mais para o humano, para o social, para o coletivo, me tornei também alguém que quer fazer algo concreto pelo social, não só pelo meio da arte, mas pelo voluntariado, trabalho que já faço há alguns anos.
Podemos dizer que a violência em suas diversas formas (doméstica, contra as minorias, urbana…) é um dos temas com os quais você mais trabalhou?
Sim, a violência é uma temática que me interessa e é foco do meu trabalho porque é coletiva, é algo que perpassa todas as camadas sociais e está em todos nós.
Por que essa temática é tão presente na sua produção? Que contribuição a arte pode trazer ao falar de violência?
Reflexão. A arte e a filosofia são, para mim, as únicas possibilidades de deslocamento, de se colocar em outro lugar, de transpor.
A crítica social também é um dos temas recorrentes no seu trabalho. Como essa crítica se impõe para você?
É impossível você se debruçar sobre um tema como a violência e não analisar de onde ela é alimentada, como ela atinge mais as camadas sociais que estão à margem, é natural que você construa uma análise crítica sobre isso.
Qual a potência da combinação visual pop, crítica social, e violência?
A contemporaneidade .No meu ponto de vista, o artista contemporâneo é o artista do seu tempo. Eu uso a estética do meu tempo para falar de questões do momento. Se a sociedade está em cores fortes e vibrantes, por que não usar isso na estética do trabalho?
Como o fato de ter nascido e vivido em Belém são importantes nessa combinação?
Belém é uma cidade de contrastes, temos na floresta que nos cerca a abundância e a pobreza. Na cidade temos a arquitetura do colonizador e a grande massa pobre do que foi colonizado e que hoje não tem mais a economia da borracha e vive do funcionalismo, do comércio e do extrativismo. Vivo em um Estado rico em vegetação e mineração, onde temos uma cultura potente e maravilhosa, e, em contraponto, que foi socialmente abandonada ao longo dos anos, então vivo dentro de um território que reflete minha pesquisa, que é a violência.
O que te interessa na linguagem artística?
A capacidade de deslocamento. Eu busco, como artista, criar uma estética que capture o olhar do espectador e que seja capaz de fazê-lo refletir, muitas vezes fazendo-o sair do seu lugar e se deslocando ao encontro do outro.