A última vez que André Liohn esteve em uma guerra foi na Ucrânia, no início de 2022, quando a Rússia invadiu o país. Todas as coberturas de guerra são extremamente delicadas e tensas, mas essa deixou o fotojornalista especialmente alarmado. “Os conflitos de hoje estão mudando drasticamente e a cobertura jornalística em campo também”, explica o fotógrafo, que esteve em Brasília durante a semana para participar do projeto Imagem sem fronteiras, na Galeria Olho de Águia, e para inaugurar a exposição Revoga. “Hoje, os exércitos, grupos armados e estados têm muitas formas de estar te observando, a liberdade de movimentação é muito restrita, a liberdade de contatos em campo com dissidentes ou outros grupos é muito difícil. É muito difícil para as pessoas, hoje, se esconderem, isso não existe mais.”
Liohn é uma das maiores referências contemporâneas em cobertura fotográfica de conflitos armados. Nos últimos 20 anos, ele esteve na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, em Uganda, no Haiti e na Ucrânia para registrar a violência imposta pela guerra, pela desigualdade e por desastres naturais. Nesse tempo, acumulou pelo menos 12 prêmios, entre eles o New York Photo Festival Photographic Coverage e o Robert Capa Gold Medal Award. Segundo o fotógrafo, o mundo digital está, aos poucos, limitando esse tipo de cobertura. “Os sistemas eletrônicos, a internet, as movimentações bancárias eletrônicas, os vistos eletrônicos, o passaporte com chip e o telefone celular dificultam muito o trabalho”, garante.
A experiência na Ucrânia, onde chegou logo no início do conflito gerado pela invasão de Rússia em fevereiro de 2022, é um exemplo. Com o visto carimbado no passaporte registrado eletronicamente, era possível saber todos os passos do fotógrafo: onde esteve, quando, com quem falou. “E nossa profissão exige um imediatismo muito rápido, o que nos faz até esquecermos que têm coisas que precisam de mais cuidado. Então o trabalho de cobertura de guerra hoje é muito difícil e perigoso, está quase acabando”, garante Liohn, cujo material é publicado em veículos como Der Spiegel, L’Espresso, Time, Newsweek, Le Monde, The Guardian, Veja, The New York Times e outros.
Na Galeria Olho de Águia, o fotógrafo, natural de Botucatu (SP), realiza a mostra Revoga, uma reunião de 13 fotos que trazem desde registros da Líbia até imagens mais recentes na qual o fotógrafo mira a violência urbana brasileira. “Desde 2012, tenho documentado a violência no Brasil, questionando se temos ou não uma guerra velada. Porque, exteriormente, a estética de muitas das nossas violências se parece com uma guerra”, explica. Em entrevista ao Correio, o fotógrafo fala sobre a cobertura de guerra, o Brasil e os conflitos mais recentes, na Ucrânia e em Gaza.
Entrevista com André Liohn
Há alguns anos, você tem se debruçado sobre a fotografia da violência no Brasil em uma tentativa de compreender a semelhança entre a guerra e a violência urbana. Essa semelhança existe?
Minha questão é se essa semelhança visual é apropriada para resolvermos nossos problemas, porque precisamos resolver com políticas públicas, não com métodos de guerra. E esse discurso de guerra vem sendo adotado por políticos, chefes de instituições e polícias. A gente acaba comprando essa história e se comportando como se estivéssemos numa guerra, mas não estamos.
Você costuma dizer que o Brasil não vive uma guerra, apesar dos números da violência. Por quê?
A guerra é um momento em que as políticas públicas não são mais suficientes para resolver os problemas. Somente a ação militar é capaz. A guerra é a política feita através da violência, é a imposição da política. No Brasil, poderíamos ter uma situação em que acordos, diálogos, buscas comuns pudessem ser caminhos para solucionar problemas. Porém, quanto mais afastado do mercado, do capital, do dinheiro as pessoas estão, mais vítimas elas são da violência e da imposição. Mas a grande maioria da população brasileira não vive assim, temos ainda ambientes em que poderíamos estar discutindo, produzindo e refletindo coisas. O problema é que as pessoas que não vivem naquela situação se convencem de que estão numa guerra e acabam se esquecendo das pessoas mais afastadas da solução e se preocupando em defender o seu.
E como isso está presente no Brasil?
O Brasil tem uma delinquência crônica. Isso significa a incapacidade de elaborar e seguir regras, que não precisam ser jurídicas, regras sociais mesmo. E nessa delinquência crônica tem algumas semelhanças com a guerra. A maior semelhança é o medo da morte violenta. É um medo que carregamos constantemente. E as únicas defesas contra a morte violenta são a violência e o abandono do espaço público, porque é no espaço público que a morte violenta acontece com mais frequência. Então, vem a afiliação a quem tem condições de me proteger ou a mesma condição que eu, seja nas escolas privadas, nos clubes, nos condomínios, na segurança privada. E quem não tem condições para isso fica abandonado no espaço público onde a morte violenta acontece mais rápido, como as escolas públicas, os hospitais públicos e os bairros da periferia.
Você esteve na Ucrânia no início do conflito com a Rússia e percebeu algumas mudanças fundamentais na dinâmica da cobertura de guerra. O que houve?
Não se vê muito mais informações sobre a Ucrânia, o governo revogou a autorização de muita gente que estava trabalhando lá, inclusive, a minha. Tudo isso é muito difícil. Jornalistas locais que começaram a cobrir eventos de corrupção sofreram ameaças. Trabalhar em campo, hoje, é muito difícil. A guerra cara a cara já quase não existe mais. A guerra hoje acontece de longe, com artilharia, é aérea, com eventos que não adianta você estar lá. Em Gaza, o exército de Israel proibiu, jornalistas não têm acesso a nenhum lugar de Gaza. O pouquíssimo acesso é sob escolta israelense e os jornalistas têm que assinar um termo de compromisso de que todo material passará sob o crivo do Exército israelense.
Mas há jornalistas palestinos que já estavam em Gaza. Como fica o trabalho deles, que também são vítimas da guerra?
As instituições do Estado israelense estão questionando a legitimidade e veracidade do que esses jornalistas estão produzindo, se são ou não associados ao Hamas, se são imparciais. Então, se aproveita desse nevoeiro. E eles não precisam estar certos, somente lançar a dúvida. Quando isso acontece, começamos a discutir a dúvida, não o evento em si. Por exemplo, quando o primeiro hospital foi atingido em Gaza, eles (os israelenses) disseram ‘não sabemos se fomos nós’. Ali eles conseguiram deslocar a discussão. E acho que nós, aqui deste lado, deveríamos entender que não podemos esperar dos palestinos em Gaza, que estão fotografando e mandando vídeo, a posição de um jornalista. É como se eu estivesse morrendo afogado no mar e tivesse que descrever jornalisticamente o medo de morrer afogado para então ser salvo. A situação em Gaza ficou tão grave que o que estão fazendo é um pedido de ajuda, é vida ou morte. E se for pedir ajuda para salvar a vida, tem que estar autorizado, inclusive, a mentir ou exagerar.
Você também cobriu os conflitos no Afeganistão. O que achou da maneira como os americanos se retiraram frente à tomada de poder do Talibã?
O que estamos vendo hoje é uma grande disputa internacional por um novo sistema político e monetário que está acontecendo no mundo todo. A saída do Afeganistão é, basicamente, para dificultar e tumultuar a relação do Paquistão com o Afeganistão. O Paquistão tem hoje um projeto de um corredor comercial com a China, então, ter o Paquistão desestabilizado é interessante. E as armas deixadas no Afeganistão não foram deixadas à toa, são armas suficientes para desestabilizar a região toda.
Estou convencido disso. Vários pensadores estão falando isso. Estamos numa transição de um modelo econômico em que o povo, a pessoa simples, o trabalhador comum vai perder cada vez mais espaço dentro das decisões, dos processos. Com a automatização do trabalho, essas pessoas vão cada vez ter menos importância e vão ser usadas como os afegãos, os palestinos. Muito em breve, as questões sociais no Brasil vão se agravar nas favelas e na posse da terra.
Vamos ver agora um aumento enorme da economia, mas a distribuição de renda vai ser um problema muito grande porque não existe um projeto de distribuição de renda. Essas pessoas que, até hoje, foram supérfluas para os meios de produção, para produção de bens, vão, cada vez mais, se transformar num empecilho e serem usadas. É um excedente de gente. E está ficando muito evidente esse problema. Estou pouco otimista com o futuro. E o nosso trabalho de jornalismo está cada vez mais difícil de ser executado, tem corte de verbas, questões jurídicas, todo mundo com medo de dizer alguma coisa e amanhã receber um processo.
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